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Soñadora, guerrera y extranjera de corazón. Busco sempre além da minha realidade, voo nas asas da imaginação. Há tanto o que descobrir, viver, sentir. O mundo é tão grande, maior ainda é o poder da mente. Tenho uma alma de lembrança, do querer, das possibilidades, do inimaginável da ânsia por um futuro melhor. Uma angústia constante que busca no improvável a compreensão do ser.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Kant: O QUE É AGIR MORALMENTE?

Habitualmente consideramos que agir moralmente é agir bem, é fazer o que devemos, cumprir o dever ou a lei moral. Para Kant, estas definições afiguram-se insuficientes, superficiais. Com efeito, podemos agir bem e, contudo, a nossa acção não ter valor propriamente moral. O que é para Kant uma acção moralmente válida? É uma acção determinada ou decidida por uma vontade puramente racional ou desinteressada. Assim, só podemos falar em termos correctos de uma acção moral se a vontade que decidiu realizá-la não for influenciada nessa decisão por nenhuma inclinação sensível, ou seja, por nenhum interesse, nenhuma paixão, nenhum afecto. Sem a pureza ou a racionalidade da vontade não há acção moral digna desse nome. Não basta cumprir o dever para agirmos moralmente: é preciso, para que isso aconteça, cumprir o dever pelo dever. O dever cumpre-se de uma forma moralmente válida quando o motivo que, em determinado caso, inspira e anima a nossa acção é pura e simplesmente a vontade de cumprir o dever.
 
2.1.Acções por dever e acções conformes ao dever
Para esclarecer esta definição, Kant introduz uma distinção famosa: uma coisa é agir em conformidade com o dever; outra coisa bem diferente é agir por dever. Exemplo: se devolveu a carteira com receio de posteriormente ser descoberto ou para ser elogiado pela sua honestidade agiu em conformidade com o dever. Se devolveu a carteira simplesmente porque essa era a acção correcta agiu por dever, ou seja, só houve um motivo a influenciar a sua acção: fazer o que devia ser feito.Tudo depende do motivo ou da razão por que agiu honestamente.
Kant não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis consequências que daí possam resultar. Seria deixar o cumprimento do dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso implicaria que quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o dever não haveria razão alguma para o fazer.
As acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever. Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso interesse pessoal.
As acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o homem comum «com segundas intenções». Por outras palavras, perante uma regra ou norma moral como «Sê honesto», a vontade respeita-a sem qualquer outra intenção.
Do ponto de vista moral, entendido desta forma tão rigorosa, a única razão que existe para cumprir o dever é o respeito pelo dever. O motivo porque cumprimos o dever tem de ser absolutamente independente de interesses pessoais, de desejos – o desejo de agradar aos outros -, de sentimentos -a compaixão e o amor - e de traços de carácter como a generosidade. Consideremos o caso de uma pessoa que sempre que possível ajuda pessoas carenciadas. Age bem mas se o fizer porque lhe agrada ajudar os outros, porque é próprio do seu carácter ou porque lhe agrada o reconhecimento da sua bondade, a sua acção não é feita por dever. E isso, para Kant, apesar de não ser contrário ao dever, apesar de não ser censurável, não é moralmente valioso. Imagina, por outro lado, que o comerciante do nosso exemplo, age honestamente porque é próprio da sua natureza ou do seu carácter agir assim.
O que nos motiva quando cumprimos o dever é para a ética kantiana o problema decisivo. Não se trata simplesmente de cumprir o dever.
A lei moral diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como «Não deve mentir»; «Não deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir.
Tudo isto pode parecer exagerado e demasiado rigoroso. Não é suficiente cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar – nos com o facto de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco? Kant discorda. O motivo da acção é decisivo porque caso contrário, daremos o mesmo valor moral a acções boas feitas por bons motivos e acções boas feitas por motivos errados.
 
2.3. Moralidade e direito (legalidade) em Kant.
Como já vimos, Kant distingue entre acções conformes ao dever e acções por dever.
A característica essencial das primeiras é a legalidade (são acções legais); a característica essencial das segundas é a moralidade (são acções morais).
Uma acção com valor legal é diferente de uma acção com valor moral. A legalidade
de uma acção consiste em agir devidamente mas não pura e simplesmente por dever: pago os impostos, ajo devidamente, não por absoluto respeito pela lei moral, mas para evitar problemas com a "mão pesada da justiça". A minha acção é então determinada por princípios externos.
A moralidade de uma acção é incompatível com a presença, por mínima que seja, de qualquer inclinação ou interesse. Ajo por dever, ajo assim porque é meu dever agir assim e nada mais. Assim, a acção moral é determinada por um princípio interno: obedeço à lei racional da minha consciência, independentemente de qualquer coacção ou influência externa. Obedeço à lei moral pela lei e não por causa de qualquer castigo externo.
Assim pode-se agir legalmente por interesse (desejo de lucro, de evitar represálias), mas agir moralmente e agir por interesse é contraditório. Com efeito, a moralidade de uma acção consiste na pureza da intenção, na sua absoluta racionalidade e desinteresse.
Desde modo apercebemo-nos de que Kant distingue a Ética do Direito i. e., distingue entre lei moral e jurídica.
A lei moral é, por assim dizer, um princípio voluntário autónomo de conduta. A lei moral não é uma ordem que exerça uma coacção externa. Com efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age. Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determinada situação, a minha acção não se inspirar única e simplesmente no respeito pela lei moral mas se deixar influenciar por interesses e inclinações, não serei por isso levado a tribunal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em termos exclusivamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu sou o juiz e o réu.
Como diz V. Mathieu:
«E o inverso daquilo que acontece com as leis do Estado, que ordenam fazer isto ou aquilo, mas não podem obrigar a que seja feito com determinada intenção; ordenam, por exemplo, que se paguem os impostos e têm meios para obrigar a isso, mas (mesmo que, por vezes, o desejem) não têm meios para fazer com que esses actos sejam cumpridos mais com uma intenção do que com outra (digamos, com a intenção de servir o Estado ao invés de simplesmente fugir às sanções). E isso ocorre precisamente porque constituem uma legislação externa. Se a vontade do indivíduo, em si mesma, não concorda com o que elas pedem, só podem ameaçar com certos castigos ou prometer-lhe certos prémios para obter o que desejam. Nesse caso, porém, a intenção do indivíduo não estará voltada directamente para aquilo que quer a lei, mas apenas para evitar o castigo e obter o prémio. E a lei jurídica, mesmo que se proponha a isso, não pode transformar essa intenção em outra, porque, novamente, não tem outro meio senão as ameaças ou promessas para se fazer valer.»
Citado por G. Realce e Dario Antiseri in História da Filosofia, Edições Paulistas, p. 185
2.4.O cumprimento do dever é um imperativo categórico
Deve ter reparado que a lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e que se apresenta sob a forma de imperativo («Deves»). Pense nos seguintes imperativos:
a)    «Deves ser honesto porque a honestidade compensa»
b)    «Deves ser honesto!»
Em a) apresenta-se uma regra (deves ser honesto) e a razão pela qual ela deve ser seguida. O cumprimento da regra está associado a uma condição. «Se queres ser compensado deves ser honesto». Trata-se de um imperativo hipotético. Diz que só no caso de querermos ser compensados devemos ser honestos.
O cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o dever estamos, contudo, a fazê-lo por interesse. Em b) apresenta-se uma regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim queiramos satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige o cumprimento do dever sem qualquer outro motivo a não ser o respeito pelo dever dá Kant o nome de imperativo categórico. Este imperativo exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma desinteressada.
O imperativo categórico é uma obrigação absoluta e incondicional. Exige que a vontade seja exclusivamente motivada pela razão, que seja independente em relação a desejos, interesses e inclinações particulares. Ordena que uma acção seja realizada pelo seu valor intrínseco, que seja querida por ser boa em si e não por causa dos seus efeitos. «Diz a verdade!» é um exemplo de imperativo categórico.
O imperativo hipotético é uma obrigação condicional porque a realização da acção depende de desejarmos o que com ela podemos obter. Para Kant, as acções em conformidade com o dever são acções que encaram o cumprimento do dever como útil e não como um fim em si.Na sua perspectiva, todas as teorias éticas que encaram os deveres morais como obrigações dependentes das consequências transformam-nos em imperativos hipotéticos. Ora, a moralidade não pode para Kant depender de condições e circunstâncias que variam conforme as inclinações, desejos e interesses das pessoas.  
«Se queres ser respeitado, diz a verdade» é um exemplo de imperativo hipotético.
 
 Kant apresentou várias formulações do imperativo categórico para tentar explicar mais claramente o que é agir por dever e como posso eu saber que estou a agir por dever.
 
2.4.1 A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal
 
     A primeira formulação é de especial importância:
 
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”
Uma outra formulação muito próxima desta diz: «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza».
 
Uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer isto dizer? Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se em princípio universal de conduta: «Todos devem agir assim».
Para esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico -conhecida por fórmula da lei universal – serve para testar a correcção moral das nossas máximas, o próprio Kant apresenta um exemplo: imagina que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.” Poderia essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite, querer que todos fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados. A referida pessoa não pode querer sem contradição universalizar a excepção que abriu para si própria porque se tornará excepção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de não as cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro baseado em promessas acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas desapareceria. A máxima referida auto-destrói-se ao ser universalizada porque ninguém poderá agir de acordo com ela.
A acção moralmente correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal. Como? Colocando de parte os seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e pensa imparcialmente fará o mesmo: será honesta e sabendo que não o pode devolver não pedirá dinheiro emprestado. Aplica a mesma ideia a deveres morais comuns como “ “Paga o que deves”, “Sê leal”, “Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e parcialidade do agente pode levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e aprovamo-los.
 
2.4.2 A fórmula da humanidade: ao cumprir correctamente o dever respeitamo – nos e respeitamos os outros.
Continuando com o mesmo exemplo, pensa no modo como quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa unicamente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.
Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.
Explicitando o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da lei universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por «fórmula da humanidade»:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos. O respeito pela sua dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua condição de ser racional o ser humano tem um valor incomparável (não comparável com o valor das coisas e dos animais que têm, para Kant, um valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano vale mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a ética kantiana é frequentemente denominada ética do respeito pelas pessoas.
Até agora sabemos que a «fórmula da humanidade» exige que o ser racional respeite os outros seres racionais e seja por eles respeitado.
Mas ela diz mais: diz que nenhum ser humano se deve tratar a si mesmo apenas como um meio. A prostituição, o masoquismo são exemplos de violação desta norma mas mesmo quando desrespeitamos directamente os direitos dos outros como no caso da escravatura, da violação, do roubo e da mentira estamos também a abdicar da nossa dignidade.
Para terminar esta análise outra nota importante: a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios porque se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de usar os seus clientes para prosperar, mas se ele enganar nos preços e não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.
Esta é a mais famosa das fórmulas do imperativo categórico que aparece nas obras de Kant sobre ética. O seguinte texto explica que devemos a Kant a fundamentação propriamente filosófica do conceito de pessoa.
«A noção de pessoa está no centro do pensamento moral do Ocidente. Tem uma fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado tem a sua origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem direitos. Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido moral: o termo 'pessoa' designava originariamente uma máscara, tendo depois tomado o sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia, como é evidente em Epicteto e Marco Aurélio, a função que a Providência estabelece para cada homem durante a sua vida.
A outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã. O Antigo Testamento prescreve o amor por todos os homens (inclusive os estrangeiros) e o socorro à viúva, ao órfão, ao oprimido, ao pobre e ao esfomeado. O Novo Testamento retoma este dever de caridade universal, mas vai mais longe, identificando o amor ao próximo com o amor de Deus e pregando o amor aos próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa muito diferente da função exercida na cidade e da posição ocupada na hierarquia social. O que importa não é a aparência exterior, mas o interior, aquilo que constitui a alma da acção no sentido pleno da palavra. Daí a proibição de julgarmos os outros porque o futuro está aberto para o homem, para a mulher adúltera, para o filho pródigo. A humanidade é, para o cristianismo, a virtude essencial e traduz-se pelo espírito de simplicidade do qual as crianças são, ao longo dos Evangelhos, o símbolo.
Contudo, nos Evangelhos, a ideia de igualdade das pessoas apresenta-se sob a forma de predicação e de exortação: tratar todos os homens como humanos e iguais. É com Kant, no século xvm, que a pessoa se torna uma noção propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma família pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo, mas o seu objecto principal foi o de constituir uma moral racional, independente da religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em 1785, na obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes Kant lança as bases de uma ética da pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, retoma esses princípios. Nessa obra Kant enuncia pela primeira vez estes princípios fundamentais: o homem é um fim em si, é uma pessoa e distingue-se das coisas. Para Kant considerar o homem como fim em si é considerar cada homem como uma pessoa, isto é, como um valor absoluto e não como um meio ao serviço de um fim.
Assim o ser racional identifica-se com a razão e, tal como esta, não deve estar subordinado a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de necessidade e de inclinações, constitui aquilo a que se chama individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve ao mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros.
A divisão social do trabalho implica que cada homem exerce uma função útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa reciprocidade de serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao serviço dos outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira de um doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas não se torna por isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é de modo algum afectada e assim deve ser para qualquer profissão, trabalho ou função. Ninguém tem o direito moral de impor a um homem uma tarefa que possa alienar o seu valor como ser humano. Ninguém tem o direito moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfazer interesses. Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como uma coisa. É faltar ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de injustiça ou de opressão é uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos de que aquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental se funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant. Os fundamentos estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos do Homem de 1948, continuando a ser um ideal a realizar plenamente nos factos e nas instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor absoluto da pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela primeira vez explicou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre.» [Louis-Marie Morfaux, L'Épreuve écrite de philosophie]
 
2.4.3 A autonomia da vontade
A mais importante novidade da ética kantiana consiste na afirmação de que nas decisões moralmente correctas nós somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais. O agente moral é autónomo quando age por dever, ou seja, quando a sua máxima passa o teste do imperativo categórico e se torna regra segundo a qual todos podem agir. O agente autónomo aceita a lei moral não porque alguma autoridade externa o convenceu ou porque receia as consequências de não a aceitar. Aceita-a porque a lei é criada por si mesmo quando as escolhas morais são imparcial e desinteressadamente determinadas pela sua razão. É ao mesmo tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética kantiana não admite autoridades morais externas e superiores à razão. A autonomia é a unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.
 
Já sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos atribuir moralidade às nossas acções: 1 - agirmos de acordo com uma máxima universal e 2 – agirmos encarando os outros como fins em si e não simplesmente como meios. Ao agir segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal.
É isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano que em muitos casos ouve a voz dos seus interesses. A lei moral exige que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos simplesmente porque considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos outros, etc.) decide fazer o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma vontade boa. A vontade autónoma é a que age por dever.
A heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a outros motivos (o receio das consequências, o temor a Deus, etc.), a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por interesse. No melhor dos casos, age em conformidade com o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.
 
 
A teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” ordena o comerciante a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito…” hesita o comerciante), explica porque o dever parece ter uma origem numa autoridade exterior que nos contraria.
Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que criei ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma vontade autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua uma lei da razão, lei presente na consciência de todos os seres racionais. Ao agir por dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.
 
Poderá objectar: «Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por considerar que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez mandamentos, não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?». Kant responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano não é um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser. Porquê depender de uma autoridade externa - ser heterónomo - para definir o dever moral se podemos ser autónomos, isto é, se podemos mediante máximas desinteressadas e imparciais estabelecer o que é dever para nós e para todos?
 
2.4. A vontade autónoma é a vontade boa.
A boa vontade age por dever. A vontade heterónoma em Kant, age apenas em conformidade com o dever. Ao decidir-se por determinada acção a vontade autónoma não visa outro fim senão o respeito puro e simples pela lei moral. Sendo uma vontade determinada por um imperativo categórico e não hipotético, o critério da sua moralidade não está no conteúdo do acto mas sim na sua forma não empiricamente condicionada. Deste modo, agindo por puro e simples respeito pela lei moral, a boa vontade é a vontade boa em si mesma. Não cumpre o dever porque isso é útil mas porque assim deve ser. Sendo uma vontade que age desinteressadamente ou que se determina a agir de uma forma puramente racional a boa vontade é puramente formal e não material. A bondade da vontade não deriva da bondade dos seus resultados. Com efeito, podemos querer fazer mal a uma pessoa e acabar involuntariamente por lhe fazer bem. E podemos querer fazer bem a uma pessoa e, involuntária ou inadvertidamente, acabar por lhe fazer mal. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a intenção do acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade boa. Mas que tipo de intenção caracteriza uma boa vontade? A boa vontade é do ponto de vista moral a única coisa absolutamente boa. O que torna a vontade boa? A acção que pratica? Não. Os resultados que consegue? Não. A aptidão para alcançar bons resultados? Não, embora ser bem sucedida não seja, de modo algum, de desprezar. O que torna boa a vontade é a intenção que subjaz à sua acção. Supõe, mais uma vez, que devolves uma carteira que encontraste no refeitório da tua escola. Fizeste o que de acordo com as normas morais estabelecidas devias fazer. Mas é este facto suficiente para, segundo Kant, dizer que agiste de boa vontade? Não. Podes ter realizado essa acção por receio de ser descoberto, para não ficares de consciência pesada, e não por teres pensado que era essa a acção correcta. A tua intenção não foi propriamente cumprir o dever mas evitar problemas. Podemos ver que o que caracteriza a boa vontade é cumprir o dever sem outro motivo ou razão a não ser fazer o que é correcto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única intenção: cumprir o dever pelo dever.
 
Assim:
A sua máxima pode transformar-se em princípio da acção de todo e qualquer
ser racional.
Como o móbil da sua acção é puramente racional, a boa vontade consiste no
respeito pela racionalidade de todo e qualquer ser humano, nunca o conside
rando simplesmente como meio para a realização de um interesse.
Se respeitar puramente a lei suprema da razão corresponde ao respeito da au
tonomia e dignidade de qualquer ser humano, isso nada mais significa do que
a autonomia da própria vontade. Tornando-se racional, a vontade boa não é
determinada por nada de exterior, dá a si mesma a lei da sua acção.
Fazendo sua a lei da razão, a boa vontade é uma vontade livre e racional que se eleva acima dos interesses e das inclinações.
 

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Dulce María (Minha maior Inspiração)

No pares

Nadie puede pisotear tu libertad
Grita fuerte por si te quieren callar
Nada puede deternerte si tu tienes fe
No te quedes con tu nombre escrito en la pared
En la pared...

Si censuran tus ideas, ten valor
No te rindas nunca, siempre alza la voz
Lucha fuerte, sin medida, no dejes de creer
No te quedes con tu nombre escrito en la pared
En la pared...

No pares, no pares no
No pares nunca de soñar
No pares, no pares no
No pares nunca de soñar
No tengas miedo a volar
Vive tu vida

No construyas muros en tu corazon
Lo que hagas, siempre hazlo por amor
Pon las alas contra el viento
No hay nada que perder
No te quedes con tu nombre escrito en la pared...

No pares nunca de soñar
No pares, no pares no
No pares nunca de soñar
No tengas miedo a volar
Viver tu vida

Mi Guerra Y Mi Paz

Es como un juego sin control
En donde nadie pierde y gana
Es ley de acción y reacción
Es la ley de tu amor y mi amor

No puedo estar lejos de ti
Pero a tu lado no quiero estar
Estoy atada a esta relación
Que me hace volver escapar

Contigo y sin ti es mi obsesión
En un cruel laberinto perdida estoy
No debo permitirme ni prohibirme
Es un caos mi corazón!

Mi vida junto a ti es imposible, incompatible
Y no te puedo dejar
Estamos condenados a vernos y a desearnos
Aunque rompamos da igual.
Mi vida junto a ti es combustible, indiscutible
Es como un dulce letal
Un día nos odiamos y otro nos amamos
Eres mi guerra y mi paz

Yo no quisiera desconfiar
Y ser por siempre tu mitad
Pero más fue de mi instinto de
Conservar a mi fiel libertad

Aunque me digas la verdad
Yo encuentro siempre la falsedad
Tú me desarmas mirándome
Tú mi fuerza y mi debilidad

Contigo y sin ti es mi obsesión
En un cruel laberinto perdida estoy
No debo permitirme ni prohibirme
Es un caos mi corazón!

Mi vida junto a ti es imposible, incompatible
Y no te puedo dejar
Estamos condenados a vernos y a desearnos
Aunque rompamos da igual
Mi vida junto a ti es combustible, indiscutible
Es como un dulce letal
Un día nos odiamos y otro nos amamos
Eres mi guerra y mi paz

Tú, mi calma y mi condena
Al filo del delirio que siempre me desvela
Eres lava en mi interior
Un violento frío que congela

Mi vida junto a ti es imposible, incompatible
Y no te puedo dejar
Estamos condenados a vernos y a desearnos
Aunque rompamos da igual
Mi vida junto a ti es combustible, indiscutible
Es como un dulce letal
Un día nos odiamos y otro nos amamos
Eres mi amarga mitad
Eres mi azúcar y sal
Eres mi guerra y mi paz?

Para tornar-se o que se é

"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o".


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