PARMÊNIDES
Conta-se que Parmênides certa vez disse a respeito de
Heráclito: "Fora com os homens que nada sabem e parecem ter duas cabeças!
Junto deles está tudo, também seu pensamento, em fluxo. Eles admiram as coisas
perenemente mas precisam ser tão surdos quanto cegos para misturarem assim os
contrários!".
De fato, enquanto um se baseava na lenta e dolorosa escalada
da lógica pura, e outro muitas vezes parecia estar guiado pela intuição e até
por um misticismo confuso, era natural que não apenas discordassem, mas que se
desenvolvessem ânimos entre eles. No entanto, esse conflito nos é fundamental,
pois teria sido o primeiro choque de idéias que ainda hoje encontra força e
significado; afastando-se lentamente da Filosofia da Natureza e do misticismo
de Pitágoras, Heraclito e Parmênides começam a desbravar um território que
ainda hoje nos assombra - o estudo dos seres e dos não - seres. Ao questionar o
que eles são, até que ponto eles são válidos e reais, ponto de divergência
entre os dois, o que é, como ocorre e se ocorre o vir -a- ser (isto é, não ser
então tornar-se) eles partem para um estudo mais aprofundado da realidade além
de onde a ciência ou qualquer outra área do conhecimento com a exceção da
filosofia alcançam.
Parmênides nasceu em Eléia na Itália, por volta de 530 a. c.
Sua filosofia, dita Eleata, contrasta-se com a de Heráclito, dita Jônica, por
seu tom cinza, frio e penetrante, mostrando um processo lógico de passos
lentos, porém firmes; a filosofia de Parmênides pode ser dividida em duas
fases, que servem inclusive para dividir o pensamento pré- socrático; em sua
primeira fase, o pensamento de Parmênides é feito a partir de um sistema
físico- filosófico; quando ele parte, no entanto, para a teoria do Ser, ele
marca a divisão entre um pensamento anaximândrico e o pensamento parmenídico.
Nos interessa, logicamente, apenas a segunda parte, onde se concentra o que há
de inovador em sua filosofia;
O primeiro passo tomado por Parmênides é tentar ordenar a
realidade; para isso, faz uso de duas classes; aquelas que são, e aquelas que
não são- ao observar a luz e a escuridão, por exemplo, observou que a escuridão
nada mais era que a negação as luz; como uma qualidade negativa; a partir daí
partiu para outros pares de opostos, leve e pesado, sutil e denso, passivo e
ativo, terra e fogo, frio e quente, etc. Parmênides relacionava uma das
características à luz, ou positiva, e a sua oposta, à escuridão, ou negativa;
depois que passou a denominá-las, simplesmente, "ser" (positiva) e
não-ser (negativa) , e postula também, que "O Ser é, e o Não-Ser não
é". Nessa seleção dos opostos, em vários momentos evidencia-se a
disposição para um pensamento lógico livre de intuições sem fundamentos, uma
característica que, aliás, marca Parmênides.
Parmênides estava, então, diante de um grande problema; ele
precisava explicar como ocorre o movimento, ou o vir-a-ser (ou seja, a mudança;
um não- ser que se torna ser, ou um ser que se torna não-ser). Foi então que
Parmênides fez uma constatação sem precedente- ao decidir por seguir a lógica,
somente a lógica, Parmênides descobriu que não sabia de nada com certeza- livre
de certezas intuitivas, não fosse questionável, nada que fosse realmente claro
e certo. Assim, Parmênides partiu em uma busca por um pensamento fundamental,
algo que fosse evidente em si. Em Parmênides, esse pensamento se manifestou
como o Princípio da Identidade - "o que é, é", ou seja, "n"
é igual a "n", e somente igual a "n" - se "n" for
igual a "a", então nada mais pode ser do que "n" (você não
pode ser igual e diferente ao mesmo tempo). Isso parecia ser tão óbvio e tão
evidente que parecia ilógico que não fosse verdade.
Aqui entram as complicações de Parmênides- diante do Ser e do
Não-Ser, e da Identidade, ele não podia enxergar um caminho para que ocorresse
o vir-a - ser O Ser é, e o Não- ser não é, pensava Parmênides: como pode-se
dizer que "algo era", ou "algo será"? o ser não pode vir do
não- ser, pois o não- ser, é o nada e nada pode surgir do nada; e se viesse do
Ser, o que seria isso senão a criação de si mesmo? O perecimento- o deixar de
ser- também sofre do mesmo problema. Nesse momento, Parmênides marcha para sua
conclusão final- não há mudança, e, portanto, não há distinção entre seres e
não- seres. O homem que criticara Heráclito por sua cegueira e surdez agora
tinha como palavra de ordem a negação do que os "sentidos mentirosos"
lhe mostravam- o Ser é Uno, um único grande Ser eterno que jamais se altera e a
qual tudo, Seres e Não -Seres, são apenas ilusões de si mesmo.
É possível observar tocantes semelhantes de Parmênides e
outros eleatas como Xenófanes com o Hinduísmo, e até mesmo com correntes de
pensamentos que florescem em nosso tempo; e, embora várias críticas possam ser
feitas a Parmênides, talvez a mais fundamental seja quanto a seu curso da
lógica- hoje pensamos que a razão que deve se adequar à realidade, e não o
contrário; assim, se a "lógica pura e bruta" diz que tudo é uma ilusão,
então a falha deve estar na lógica, e não no mundo. Parmênides desenvolveu
também um profundo estudo do infinito, juntamente com seu discípulo Zeno (ou
Zenão de Eléia).
HERÁCLITO
Parmênides cai no repouso universal; já um fragmento dos escritos
de Heráclito diz: "Tudo flui e nada permanece; tudo se afasta e nada fica
parado... Você não consegue se banhar duas vezes no mesmo rio, pois outras
águas e ainda outras sempre vão fluindo...É na mudança que as coisas acham
repouso..."
De fato, enquanto Parmênides duvida do vir-a-ser, Heráclito
faz deles um dos seus pontos de partida; dessa maneira, afirma que nada é
permanente, que tudo está em constante mutação, incessantemente; nesse ponto
enxerga-se um paralelo curioso com o pensamento oriental, embora as
civilizações de onde surgiram conceitos tão semelhantes ainda não tivessem
entrado em contato com umas com as outras; a respeito de sua vida, Heráclito
nasceu em Efésios; conhecido por desprezar quase todos, senão todos, os
pensadores e poetas da sua época, não teve mestre, dizendo na adolescência que
"não sabia nada", e, na idade adulta, que "sabia tudo".
Heráclito, em seu comportamento anti-social, resolveu se afastar da cidade e
habitar os campos, se alimentando apenas de ervas, o que lhe trouxe hidropisia,
que acabou lhe matando. Conta-se que teria retornado a Efésios e perguntado se
seria possível curá-lo esvaziando seus intestinos; como diziam que não, dizem
que deitou em praça pública e deu o comando que lhe cobrissem de esterco, para
que o calor fizesse evaporar a água que tanto lhe atormentava; tendo então
morrido por sob uma pilha de esterco, alguns dizem que teria sido sepultado na
própria praça pública, enquanto outros dizem que ele teria sido devorado pelos
cachorros que ali passavam.
Heráclito foi também conhecido por Skoteinós, que quer dizer
"O Obscuro"- de fato, seus pensamentos muitas vezes parecem
contraditórios e sem sentido, e apesar de seu amor declarado por Lógos (a
lógica, a razão) ele não parece disposto a se utilizar tão exclusivamente dela,
como Parmênides, mesmo que seus pensamentos a respeito da lógica tenham sido de
fundamental importância para grandes pensadores como Aristóteles e Hegel.
Heráclito declara que tudo está em mutação, mas apenas o que permanece é- e o
que permanece, senão a própria mudança? Assim, ele denomina como Lógos essa lei
universal da mudança- o modo com que as coisas mudam- e ainda: "Todos
fazemos e dizemos segundo a participação do Lógos. Por isso devemos seguir
apenas a este entendimento universal. Muitos, porém, vivem como se tivessem um
entendimento próprio; o entendimento, porém, não é outra coisa que a
interpretação (o tomar consciência, a exposição, a convicção) dos modos da
ordenação do todo. Por isso, na medida em que tomamos no saber dele, estamos na
verdade; mas, na medida em que temos coisas particulares (próprias) , estamos
na ilusão"
Heráclito também parte da divisão do universo entre dois
pólos, "Seres" e "Não-Seres", e, também, enxerga a unidade
entre eles. No entanto, enquanto a unidade de Parmênides é idêntica e imutável,
a de Heráclito é "tensionada entre dois pólos"; assim, mesmo que o
Ser e o Não- Ser sejam parte e coabitem o mesmo, e, como diz em suas obscuras
palavras, "O ser é tão pouco como o não- ser; o devir é e também não é",
mesmo apesar de tudo isso, não quer dizer que você possa descartá-los como
simples ilusão. Dessa maneira, enquanto os eleatas mergulham fundo em busca da
essência verdadeira, daquilo que factualmente existe, Heráclito faz uso de uma
representação, o que, não se pode negar, é um avanço considerável. A partir
dessa nova visão dos pares de opostos Heráclito cria idéias interessantes a
partir de pares como "o todo e a parte", "o que se une e o que
se opõe"; dessa idéia de que os pólos sejam simples abstrações e habitem o
mesmo, conclui que, em suas próprias palavras, "O Um, diferenciado de si
mesmo, une-se consigo mesmo, como a harmonia do arco e da lira". Essa
harmonia seria Lógos, a razão, que une os opostos em sons consoantes; como a
composição grega é horizontal e não vertical, por harmonia entende-se a maneira
como sons tocados em sequência equilibram-se entre si; daí a metáfora torna-se
perfeita, como mudança.
Heráclito também teve uma participação marcante juntamente
dos jônicos, voltando-se novamente aos modelos físico- filosóficos; e nesse
ponto a partir de diferentes fontes encontra-se diferentes visões a respeito de
qual seria a essência ontológica; essas aparentes contradições parecem ruir,
pelo outro lado, quando se lembra que nada era permanente para Heráclito (senão
Lógos, a mudança em si) , e que ele parece estar mais preocupado com determinar
o ciclo de mudanças e a maneira como esta ocorre- e daí a indicação do tempo
como uma das essências ontológicas. Mesmo assim, ele acende e se apaga.
De um lado, um mundo em repouso, onde tudo que se movimenta é
ilusão, nascida da lógica; pelo outro lado, um mundo onde tudo é movimentado,
onde as coisas nascem mas, nas palavras de Buda, "Você deveria saber que
todas as coisas nesse mundo são efêmeras- unir-se significa inevitavelmente
separar-se. Não se entristeça, pois tal é a natureza da vida", uma visão
gerada pela razão, mas também por um recém-nascido método especulativo, baseado
em como Lógos alcança a mente humana, e, no fundo, muitos traços se intuição e
misticismo, condenáveis não ao pensador, mas ao ser humano por trás dele. E
assim nascia a Filosofia.
Autoria: Samuel Pereira
Nenhum comentário:
Postar um comentário