Habitualmente
consideramos que agir moralmente é agir bem, é fazer o que devemos,
cumprir o dever ou a lei moral. Para Kant, estas definições afiguram-se
insuficientes, superficiais. Com efeito, podemos agir bem e, contudo, a
nossa acção não ter valor propriamente moral. O que é para Kant uma
acção moralmente válida? É uma acção determinada ou decidida por uma
vontade puramente racional ou desinteressada. Assim, só podemos falar em
termos correctos de uma acção moral se a vontade que decidiu realizá-la
não for influenciada nessa decisão por nenhuma inclinação sensível, ou
seja, por nenhum interesse, nenhuma paixão, nenhum afecto. Sem a pureza
ou a racionalidade da vontade não há acção moral digna desse nome. Não
basta cumprir o dever para agirmos moralmente: é preciso, para que isso
aconteça, cumprir o dever pelo dever. O dever cumpre-se de uma forma
moralmente válida quando o motivo que, em determinado caso, inspira e
anima a nossa acção é pura e simplesmente a vontade de cumprir o dever.
2.1.Acções por dever e acções conformes ao dever
Para
esclarecer esta definição, Kant introduz uma distinção famosa: uma
coisa é agir em conformidade com o dever; outra coisa bem diferente é
agir por dever. Exemplo: se devolveu a carteira com receio de
posteriormente ser descoberto ou para ser elogiado pela sua honestidade
agiu em conformidade com o dever. Se devolveu a carteira simplesmente
porque essa era a acção correcta agiu por dever, ou seja, só houve um
motivo a influenciar a sua acção: fazer o que devia ser feito.Tudo
depende do motivo ou da razão por que agiu honestamente.
Kant
não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis
consequências que daí possam resultar. Seria deixar o cumprimento do
dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso
implicaria que quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o
dever não haveria razão alguma para o fazer.
As
acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever.
Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões
suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso
interesse pessoal.
As
acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um
fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir
por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na
base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o
homem comum «com segundas intenções». Por outras palavras, perante uma
regra ou norma moral como «Sê honesto», a vontade respeita-a sem
qualquer outra intenção.
Do
ponto de vista moral, entendido desta forma tão rigorosa, a única razão
que existe para cumprir o dever é o respeito pelo dever. O motivo
porque cumprimos o dever tem de ser absolutamente independente de
interesses pessoais, de desejos – o desejo de agradar aos outros -, de
sentimentos -a compaixão e o amor - e de traços de carácter como a
generosidade. Consideremos o caso de uma pessoa que sempre que possível
ajuda pessoas carenciadas. Age bem mas se o fizer porque lhe agrada
ajudar os outros, porque é próprio do seu carácter ou porque lhe agrada o
reconhecimento da sua bondade, a sua acção não é feita por dever. E
isso, para Kant, apesar de não ser contrário ao dever, apesar de não ser
censurável, não é moralmente valioso. Imagina, por outro lado, que o
comerciante do nosso exemplo, age honestamente porque é próprio da sua
natureza ou do seu carácter agir assim.
O
que nos motiva quando cumprimos o dever é para a ética kantiana o
problema decisivo. Não se trata simplesmente de cumprir o dever.
A
lei moral diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer
circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como
«Não deve mentir»; «Não deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral,
segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta
de os cumprir.
Tudo
isto pode parecer exagerado e demasiado rigoroso. Não é suficiente
cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso
suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há
tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos
contentar – nos com o facto de que há pessoas que fazem o que devem
fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que
importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco? Kant
discorda. O motivo da acção é decisivo porque caso contrário, daremos o
mesmo valor moral a acções boas feitas por bons motivos e acções boas
feitas por motivos errados.
2.3. Moralidade e direito (legalidade) em Kant.
Como já vimos, Kant distingue entre acções conformes ao dever e acções por dever.
A
característica essencial das primeiras é a legalidade (são acções
legais); a característica essencial das segundas é a moralidade (são
acções morais).
Uma acção com valor legal é diferente de uma acção com valor moral. A legalidade
de
uma acção consiste em agir devidamente mas não pura e simplesmente por
dever: pago os impostos, ajo devidamente, não por absoluto respeito pela
lei moral, mas para evitar problemas com a "mão pesada da justiça". A
minha acção é então determinada por princípios externos.
A
moralidade de uma acção é incompatível com a presença, por mínima que
seja, de qualquer inclinação ou interesse. Ajo por dever, ajo assim
porque é meu dever agir assim e nada mais. Assim, a acção moral é
determinada por um princípio interno: obedeço à lei racional da minha
consciência, independentemente de qualquer coacção ou influência
externa. Obedeço à lei moral pela lei e não por causa de qualquer
castigo externo.
Assim
pode-se agir legalmente por interesse (desejo de lucro, de evitar
represálias), mas agir moralmente e agir por interesse é contraditório.
Com efeito, a moralidade de uma acção consiste na pureza da intenção, na
sua absoluta racionalidade e desinteresse.
Desde modo apercebemo-nos de que Kant distingue a Ética do Direito i. e., distingue entre lei moral e jurídica.
A
lei moral é, por assim dizer, um princípio voluntário autónomo de
conduta. A lei moral não é uma ordem que exerça uma coacção externa. Com
efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age.
Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determinada situação, a
minha acção não se inspirar única e simplesmente no respeito pela lei
moral mas se deixar influenciar por interesses e inclinações, não serei
por isso levado a tribunal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos
para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não
por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar
aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em
termos exclusivamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a
intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu
sou o juiz e o réu.
Como diz V. Mathieu:
«E
o inverso daquilo que acontece com as leis do Estado, que ordenam fazer
isto ou aquilo, mas não podem obrigar a que seja feito com determinada
intenção; ordenam, por exemplo, que se paguem os impostos e têm meios
para obrigar a isso, mas (mesmo que, por vezes, o desejem) não têm meios
para fazer com que esses actos sejam cumpridos mais com uma intenção do
que com outra (digamos, com a intenção de servir o Estado ao invés de
simplesmente fugir às sanções). E isso ocorre precisamente porque
constituem uma legislação externa. Se a vontade do indivíduo, em si
mesma, não concorda com o que elas pedem, só podem ameaçar com certos
castigos ou prometer-lhe certos prémios para obter o que desejam. Nesse
caso, porém, a intenção do indivíduo não estará voltada directamente
para aquilo que quer a lei, mas apenas para evitar o castigo e obter o
prémio. E a lei jurídica, mesmo que se proponha a isso, não pode
transformar essa intenção em outra, porque, novamente, não tem outro
meio senão as ameaças ou promessas para se fazer valer.»
Citado por G. Realce e Dario Antiseri in História da Filosofia, Edições Paulistas, p. 185
2.4.O cumprimento do dever é um imperativo categórico
Deve
ter reparado que a lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e
que se apresenta sob a forma de imperativo («Deves»). Pense nos
seguintes imperativos:
a) «Deves ser honesto porque a honestidade compensa»
b) «Deves ser honesto!»
Em
a) apresenta-se uma regra (deves ser honesto) e a razão pela qual ela
deve ser seguida. O cumprimento da regra está associado a uma condição.
«Se queres ser compensado deves ser honesto». Trata-se de um imperativo
hipotético. Diz que só no caso de querermos ser compensados devemos ser
honestos.
O
cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o
dever estamos, contudo, a fazê-lo por interesse. Em b) apresenta-se uma
regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim queiramos
satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever
e não porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige
o cumprimento do dever sem qualquer outro motivo a não ser o respeito
pelo dever dá Kant o nome de imperativo categórico. Este imperativo
exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma
desinteressada.
O
imperativo categórico é uma obrigação absoluta e incondicional. Exige
que a vontade seja exclusivamente motivada pela razão, que seja
independente em relação a desejos, interesses e inclinações
particulares. Ordena que uma acção seja realizada pelo seu valor
intrínseco, que seja querida por ser boa em si e não por causa dos seus
efeitos. «Diz a verdade!» é um exemplo de imperativo categórico.
O
imperativo hipotético é uma obrigação condicional porque a realização
da acção depende de desejarmos o que com ela podemos obter. Para Kant,
as acções em conformidade com o dever são acções que encaram o
cumprimento do dever como útil e não como um fim em si.Na sua
perspectiva, todas as teorias éticas que encaram os deveres morais como
obrigações dependentes das consequências transformam-nos em imperativos
hipotéticos. Ora, a moralidade não pode para Kant depender de condições e
circunstâncias que variam conforme as inclinações, desejos e interesses
das pessoas.
«Se queres ser respeitado, diz a verdade» é um exemplo de imperativo hipotético.
Kant
apresentou várias formulações do imperativo categórico para tentar
explicar mais claramente o que é agir por dever e como posso eu saber
que estou a agir por dever.
2.4.1 A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal
A primeira formulação é de especial importância:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”
Uma
outra formulação muito próxima desta diz: «Age como se a máxima da tua
acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza».
Uma
máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer
isto dizer? Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se
em princípio universal de conduta: «Todos devem agir assim».
Para
esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico
-conhecida por fórmula da lei universal – serve para testar a correcção
moral das nossas máximas, o próprio Kant apresenta um exemplo: imagina
que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro
emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado
mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que
precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os
teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.” Poderia
essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite, querer que todos
fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição
querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra
criaria um estado de coisas em que mesmo os seus interesses acabariam
por ser lesados. A referida pessoa não pode querer sem contradição
universalizar a excepção que abriu para si própria porque se tornará
excepção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de
não as cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro
baseado em promessas acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas
desapareceria. A máxima referida auto-destrói-se ao ser universalizada
porque ninguém poderá agir de acordo com ela.
A
acção moralmente correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma
perspectiva universal. Como? Colocando de parte os seus interesses, a
pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus
interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa
ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus
interesses e pensa imparcialmente fará o mesmo: será honesta e sabendo
que não o pode devolver não pedirá dinheiro emprestado. Aplica a mesma
ideia a deveres morais comuns como “ “Paga o que deves”, “Sê leal”, “Não
roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e parcialidade do
agente pode levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada
a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e
aprovamo-los.
2.4.2 A fórmula da humanidade: ao cumprir correctamente o dever respeitamo – nos e respeitamos os outros.
Continuando
com o mesmo exemplo, pensa no modo como quem pede dinheiro emprestado
sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta
dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um
problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa
unicamente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem
ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a
ajudá-lo.
Sempre
que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da
nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não
pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas
como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.
Explicitando
o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da
lei universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por
«fórmula da humanidade»:
Age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como
meio.
Segundo
esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por
isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo
como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor
intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor
absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos. O respeito
pela sua dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua
condição de ser racional o ser humano tem um valor incomparável (não
comparável com o valor das coisas e dos animais que têm, para Kant, um
valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano vale
mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem
várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a
ética kantiana é frequentemente denominada ética do respeito pelas
pessoas.
Até
agora sabemos que a «fórmula da humanidade» exige que o ser racional
respeite os outros seres racionais e seja por eles respeitado.
Mas
ela diz mais: diz que nenhum ser humano se deve tratar a si mesmo
apenas como um meio. A prostituição, o masoquismo são exemplos de
violação desta norma mas mesmo quando desrespeitamos directamente os
direitos dos outros como no caso da escravatura, da violação, do roubo e
da mentira estamos também a abdicar da nossa dignidade.
Para
terminar esta análise outra nota importante: a fórmula não proíbe as
pessoas de serem meios porque se o proibisse, proibiria qualquer
prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de usar os
seus clientes para prosperar, mas se ele enganar nos preços e não
devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como
meios, instrumentos ou objectos.
Esta
é a mais famosa das fórmulas do imperativo categórico que aparece nas
obras de Kant sobre ética. O seguinte texto explica que devemos a Kant a
fundamentação propriamente filosófica do conceito de pessoa.
«A
noção de pessoa está no centro do pensamento moral do Ocidente. Tem uma
fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado tem a sua
origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma
existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem
direitos. Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido
moral: o termo 'pessoa' designava originariamente uma máscara, tendo
depois tomado o sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia,
como é evidente em Epicteto e Marco Aurélio, a função que a Providência
estabelece para cada homem durante a sua vida.
A
outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã. O Antigo Testamento
prescreve o amor por todos os homens (inclusive os estrangeiros) e o
socorro à viúva, ao órfão, ao oprimido, ao pobre e ao esfomeado. O Novo
Testamento retoma este dever de caridade universal, mas vai mais longe,
identificando o amor ao próximo com o amor de Deus e pregando o amor aos
próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa
muito diferente da função exercida na cidade e da posição ocupada na
hierarquia social. O que importa não é a aparência exterior, mas o
interior, aquilo que constitui a alma da acção no sentido pleno da
palavra. Daí a proibição de julgarmos os outros porque o futuro está
aberto para o homem, para a mulher adúltera, para o filho pródigo. A
humanidade é, para o cristianismo, a virtude essencial e traduz-se pelo
espírito de simplicidade do qual as crianças são, ao longo dos
Evangelhos, o símbolo.
Contudo,
nos Evangelhos, a ideia de igualdade das pessoas apresenta-se sob a
forma de predicação e de exortação: tratar todos os homens como humanos e
iguais. É com Kant, no século xvm, que a pessoa se torna uma noção
propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma família
pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant
meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo,
mas o seu objecto principal foi o de constituir uma moral racional,
independente da religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em
1785, na obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes Kant lança as bases
de uma ética da pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, retoma esses princípios. Nessa obra Kant
enuncia pela primeira vez estes princípios fundamentais: o homem é um
fim em si, é uma pessoa e distingue-se das coisas. Para Kant considerar o
homem como fim em si é considerar cada homem como uma pessoa, isto é,
como um valor absoluto e não como um meio ao serviço de um fim.
Assim
o ser racional identifica-se com a razão e, tal como esta, não deve
estar subordinado a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se
assim que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de
necessidade e de inclinações, constitui aquilo a que se chama
individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve
ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve
ao mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros.
A
divisão social do trabalho implica que cada homem exerce uma função
útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa reciprocidade de
serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao serviço dos
outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira de um
doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas não se torna por
isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é
de modo algum afectada e assim deve ser para qualquer profissão,
trabalho ou função. Ninguém tem o direito moral de impor a um homem uma
tarefa que possa alienar o seu valor como ser humano. Ninguém tem o
direito moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfazer
interesses. Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como
uma coisa. É faltar ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de
injustiça ou de opressão é uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos
de que aquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental se
funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant. Os fundamentos
estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos do Homem de
1948, continuando a ser um ideal a realizar plenamente nos factos e nas
instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor absoluto da
pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela
primeira vez explicou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre.» [Louis-Marie Morfaux, L'Épreuve écrite de philosophie]
2.4.3 A autonomia da vontade
A
mais importante novidade da ética kantiana consiste na afirmação de que
nas decisões moralmente correctas nós somos legisladores criando regras
válidas para todos os seres racionais. O agente moral é autónomo quando
age por dever, ou seja, quando a sua máxima passa o teste do imperativo
categórico e se torna regra segundo a qual todos podem agir. O agente
autónomo aceita a lei moral não porque alguma autoridade externa o
convenceu ou porque receia as consequências de não a aceitar. Aceita-a
porque a lei é criada por si mesmo quando as escolhas morais são
imparcial e desinteressadamente determinadas pela sua razão. É ao mesmo
tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética kantiana não admite
autoridades morais externas e superiores à razão. A autonomia é a
unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.
Já
sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos
atribuir moralidade às nossas acções: 1 - agirmos de acordo com uma
máxima universal e 2 – agirmos encarando os outros como fins em si e não
simplesmente como meios. Ao agir segundo uma máxima universal, estou a
encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o
outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima
universal.
É
isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano
que em muitos casos ouve a voz dos seus interesses. A lei moral exige
que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos simplesmente porque
considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser
influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos
outros, etc.) decide fazer o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é
autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma vontade boa. A vontade
autónoma é a que age por dever.
A
heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o
cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a
outros motivos (o receio das consequências, o temor a Deus, etc.), a
vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é
heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade
heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por
interesse. No melhor dos casos, age em conformidade com o dever. Todas
as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem
a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.
A
teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas
por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua
razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente
ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é ordem que
damos a nós mesmos (“Sê honesto!” ordena o comerciante a si mesmo), e os
interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito…”
hesita o comerciante), explica porque o dever parece ter uma origem numa
autoridade exterior que nos contraria.
Quando
decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou
imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que criei
ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma vontade
autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua uma lei da razão,
lei presente na consciência de todos os seres racionais. Ao agir por
dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.
Poderá
objectar: «Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por
considerar que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez
mandamentos, não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?». Kant
responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano não é
um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser. Porquê depender
de uma autoridade externa - ser heterónomo - para definir o dever moral
se podemos ser autónomos, isto é, se podemos mediante máximas
desinteressadas e imparciais estabelecer o que é dever para nós e para
todos?
2.4. A vontade autónoma é a vontade boa.
A
boa vontade age por dever. A vontade heterónoma em Kant, age apenas em
conformidade com o dever. Ao decidir-se por determinada acção a vontade
autónoma não visa outro fim senão o respeito puro e simples pela lei
moral. Sendo uma vontade determinada por um imperativo categórico e não
hipotético, o critério da sua moralidade não está no conteúdo do acto
mas sim na sua forma não empiricamente condicionada. Deste modo, agindo
por puro e simples respeito pela lei moral, a boa vontade é a vontade
boa em si mesma. Não cumpre o dever porque isso é útil mas porque assim
deve ser. Sendo uma vontade que age desinteressadamente ou que se
determina a agir de uma forma puramente racional a boa vontade é
puramente formal e não material. A bondade da vontade não deriva da
bondade dos seus resultados. Com efeito, podemos querer fazer mal a uma
pessoa e acabar involuntariamente por lhe fazer bem. E podemos querer
fazer bem a uma pessoa e, involuntária ou inadvertidamente, acabar por
lhe fazer mal. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a
intenção do acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade
boa. Mas que tipo de intenção caracteriza uma boa vontade? A boa vontade
é do ponto de vista moral a única coisa absolutamente boa. O que torna a
vontade boa? A acção que pratica? Não. Os resultados que consegue? Não.
A aptidão para alcançar bons resultados? Não, embora ser bem sucedida
não seja, de modo algum, de desprezar. O que torna boa a vontade é a
intenção que subjaz à sua acção. Supõe, mais uma vez, que devolves uma
carteira que encontraste no refeitório da tua escola. Fizeste o que de
acordo com as normas morais estabelecidas devias fazer. Mas é este facto
suficiente para, segundo Kant, dizer que agiste de boa vontade? Não.
Podes ter realizado essa acção por receio de ser descoberto, para não
ficares de consciência pesada, e não por teres pensado que era essa a
acção correcta. A tua intenção não foi propriamente cumprir o dever mas
evitar problemas. Podemos ver que o que caracteriza a boa vontade é
cumprir o dever sem outro motivo ou razão a não ser fazer o que é
correcto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única
intenção: cumprir o dever pelo dever.
Assim:
A sua máxima pode transformar-se em princípio da acção de todo e qualquer
ser racional.
Como o móbil da sua acção é puramente racional, a boa vontade consiste no
respeito pela racionalidade de todo e qualquer ser humano, nunca o conside
rando simplesmente como meio para a realização de um interesse.
Se respeitar puramente a lei suprema da razão corresponde ao respeito da au
tonomia e dignidade de qualquer ser humano, isso nada mais significa do que
a autonomia da própria vontade. Tornando-se racional, a vontade boa não é
determinada por nada de exterior, dá a si mesma a lei da sua acção.
Fazendo sua a lei da razão, a boa vontade é uma vontade livre e racional que se eleva acima dos interesses e das inclinações.
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