O
conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na
experiência, começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de
realidades empíricas.
Conhecer
é estabelecer relações de causalidade entre aquilo que se relaciona com
o sujeito. Como é que as coisas se podem relacionar comigo? Se se
manifestarem no espaço e no tempo, ou seja, se eu as puder espacializar e
temporalizar mediante as formas da minha sensibilidade. Isto quer dizer
que o conhecimento científico não é produzido pela sensibilidade, mas
só pode ser acerca dos dados que esta recebe. Todo o conhecimento
possível ao homem está limitado ao campo dos objectos que eu posso
enquadrar no espaço e no tempo, aos dados da intuição empírica ou
sensível.
Assim,
os dados sensíveis são o que a sensibilidade coloca ao dispor do
entendimento e do seu conceito por excelência: o conceito de causa. A
relação causal que este estabelece, está limitada aos dados sensíveis ou
fenómenos. O vínculo causa-efeito consistirá então em explicar um
fenómeno mediante outro, fazendo de um a causa do outro, e nunca poderá
consistir em explicar um fenómeno mediante algo que não seja fenómeno. O
conceito de causa só pode, portanto, ter um uso imanente, limitado aos
dados sensíveis, só pode funcionar no interior desses limites
espácio-temporais. Por isso, nunca se poderá considerar científica uma
afirmação do género: "Deus é causa disto ou daquilo". Só podemos
atribuir a propriedade de causar isto ou aquilo (este ou aquele
fenómeno) a algo que também seja fenómeno.
Conclusão:
a metafísica enquanto pretensa ciência de realidades que transcendem o
plano espácio-temporal, que não podem ser nele enquadradas pela nossa
sensibilidade, não tem direito ao título da ciência.
Se
eu pretendesse demonstrar a existência de Deus como causa do mundo (do
conjunto dos fenómenos), estaria a usar o conceito de causa de uma forma
ilegítima (uso transcendente e não imanente). O conceito de causa só
serve para estabelecer relações entre as coisas que comigo se relacionam
(os fenómenos), ou seja, para relacionar um fenómeno (uma realidade
sensível) com outra realidade que só pode, por sua vez, ser fenómeno. Se
fazemos de Deus causa do mundo e julgamos assim demonstrar a sua
existência estamos a iludir-nos porque Deus, sendo concebido como eterno
e incorpóreo, não é enquadrável no espaço e no tempo, não é fenómeno.
Ora aquilo que consideramos ser causa e aquilo que consideramos ser
efeito têm ambos de pertencer ao plano do espaço e do tempo, têm de ser
fenómenos. Não pode, pois, haver um conhecimento científico de Deus,
realidade metafísica, transcendente, supra-sensível.
1 — Todo o conhecimento começa com a experiência.
2
— O conhecimento científico não deriva da experiência (não tem o seu
fundamento nela), mas sim de certas formas a priori do sujeito que
conhece.
3
— O conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na
experiência, começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de
realidades empíricas ou sensíveis.
3.3.1. Uma distinção crucial: A distinção fenómeno-númeno
Só
podemos conhecer mediante as categorias aquilo que nos é dado pela
sensibilidade, ou seja, aquilo que podemos intuir. Só das realidades
enquadráveis no espaço e no tempo podemos ter conhecimento científico.
Kant
esclarece de imediato que reduzir o campo da actividade do conhecimento
ao plano fenoménico — ao que podemos intuir — não pode significar uma
redução da realidade ao que a sensibilidade capta e o entendimento
conhece. Dizer que só conhecemos os fenómenos — os dados sensíveis — não
impede que pensemos em realidades que não estão ao alcance da intuição
sensível. Assim introduz Kant o conceito de númeno.
Kant afirma que o conceito de númeno pode entender-se em dois sentidos:
Se
considerarmos uma coisa enquanto não é objecto da nossa intuição
sensível, i. e., abstraindo do nosso modo próprio de intuir, então temos
o númeno
em sentido negativo (aquilo que não é objecto da intuição sensível).
Se considerarmos uma coisa como objecto de uma intuição intelectual — a
qual não está em nosso poder temos o conceito de númeno em sentido positivo.
Assim,
dado que a nossa intuição é simplesmente sensível — dado que só podemos
intuir realidades sensíveis — aquilo a que chamamos númeno só pode por
nós ser entendido em sentido negativo: o númeno é aquilo que não pode
ser pensado como objecto da intuição sensível, é um "conceito-limite"
(assinala os limites da sensibilidade e da função cognitiva das
categorias do entendimento).
O númeno é o inverso do fenómeno: é algo que não é dado na intuição sensível.
Para
quê falar então do númeno ou da coisa-em-si (Ding-an-sich)? Para
impedir que se considerem os fenómenos como a totalidade do real. O
facto indiscutível de só podermos conhecer os fenómenos não pode querer
dizer que só existem os fenómenos. A investigação sobre o modo como
podemos conhecer e sobre o que podemos conhecer disse-nos que só
podíamos conhecer as realidades sensíveis e ao mesmo tempo proibiu-nos
de transgredir os limites do nosso conhecimento interditando-nos
qualquer afirmação ou negação peremptória sobre as realidades que não
podemos conhecer. Não podemos afirmar nem negar a existência dos númenos
ou coisas-em-si: Podemos contudo legitimamente pensar ou supor que
existem realidades que transcendem o plano espácio-temporal, i. e.,
realidades que não são fenómenos.
O
conhecimento científico tem limites. Está limitado ao plano dos
fenómenos. Ora falar de limites é supor que se pode pensar que há algo
para lá desses limites. O plano da realidade que ultrapassa o nosso
poder de conhecimento e que podemos pensar tem o nome de númeno ou de
mundo numénico. Assim não faz sentido reduzir a realidade (o que existe)
ao que nos é possível conhecer (o mundo dos fenómenos). Seria
arrogância do ser humano (finito e limitado como é) dizer: "Só existe
aquilo que eu posso conhecer." A realidade não pode reduzir-se ao mundo
dos fenómenos (ao plano dos objectos que, enquadrados no espaço e no
tempo, são relacionados em termos de causa e efeito pelo entendimento).
Para lá dessa dimensão é legítmo pensar que existe uma outra (o mundo
dos númenos) porque só assim faz sentido falar de limites do
conhecimento científico.
O
fenómeno é a coisa tal como é para mim — é a coisa enquanto objecto do
meu conhecimento e submetida às condições que tornam possível
conhecê-la. Falar das coisas enquanto são para mim é já supor por
contraste a existência das coisas tais como são em si mesmas. Podemos
pensar a coisa em si como númeno, i. e., como objecto que não é dado na
intuição sensível.
Em
suma, não há, em termos teóricos, qualquer determinação positiva acerca
dos númenos, não podemos conhecer as coisas enquanto númenos. O númeno é
pensável: o conceito de uma coisa que não pode ser pensada como objecto
da intuição sensível mas como coisa em si mesma não é contraditório
porque embora a intuição sensível seja a única forma de intuição humana
não podemos afirmar que ela é o único tipo de intuição possível.
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