Vimos
que a razão especulativa — acerca de um problema como o da liberdade —
movida pelo desejo de saber se há ou não liberdade cedia à tentação
metafísica aventurando-se em domínios proibidos ao nosso conhecimento.
Resultado: desorienta-se, fica bloqueada por teses contraditórias entre
si. Como sair deste impasse? Como salvar a razão dessa irracionalidade
que é a contradição consigo mesma?
A
solução deste conflito encontra-a Kant na distinção fenómeno-númeno.
Esta distinção permitirá à razão recuperar a sua sensatez.
Para
compreendermos essa solução temos de primeiro esclarecer o que tem a
distinção fenómeno-númeno a ver com o conceito de liberdade.
A
análise sobre as condições que tornam possível o conhecimento humano
mostrando--nos como ele começa e de onde deriva evidenciou os seus
limites inultrapassáveis: só conhecemos as realidades fenoménicas ou
sensíveis, os objectos espácio-temporalmente enquadrados. Ao conhecer
estes o entendimento estabelece entre eles relações necessárias ou
causais que se traduzem em enunciados a que Kant dá o nome de leis
naturais. Assim, o campo de acção do nosso conhecimento é o mundo dos
fenómenos, o mundo natural, submetido à legislação do entendimento. As
leis naturais ou científicas regem o comportamento dos fenómenos, das
realidades sensíveis ou naturais. De que modo? De um modo necessário.
Isto significa que as leis naturais são cumpridas e não podem ser
infringidas. O homem enquanto fenómeno, i. e., enquanto realidade
sensível ou natural, não pode, tal como os outros seres naturais, fugir
ao cumprimento dessas leis necessárias.
Vejamos
um caso muito simples: uma lei como a da queda dos corpos diz-nos que
sempre que um corpo perde o seu ponto de apoio, cai. Posso evitar as
condições que conduzem à queda mas, uma vez perdido o ponto de apoio,
caio. Cumpro essa lei porque assim tem de ser, não há alternativa
possível. Não foi uma decisão minha, foi um acontecimento que não
derivou da minha vontade. Em suma, não foi um acto livre. As leis
naturais, que regem o comportamento dos fenómenos, são rígidas,
necessárias, não deixam alternativa. Não se pode escolher cumpri-las ou
não: são cumpridas porque não podem deixar de ser cumpridas. Assim
sendo, o mundo dos fenómenos é o reino da necessidade. Não há nele lugar
para a liberdade, para uma acção livre, i. e., para uma acção
independente das leis naturais.
Não
fazendo parte do mundo dos fenómenos, a liberdade — realidade
metafísica — é incognoscível. Não podemos saber, em termos científicos,
se somos livres ou não. As extravagâncias da razão pura teórica, o
impasse a que chegou na sua tentativa de demonstrar a liberdade,
confirmaram que esta não pode ser objecto de copnhecimento científico. A
questão que surge imediatamente é esta: não sendo a liberdade objecto
de conhecimento — não é uma realidade fenoménica — quererá isso dizer
que ela é uma ilusão, uma ideia inconcebível, um conceito contraditório,
logicamente impossível? Dizer que não a podemos conhecer - que não
podemos saber se somos livres — implica dizer que não podemos pensar que
somos livres?
A
grande preocupação de Kant, estabelecido o carácter incognoscível da
liberdade, é a de salvaguardar o conceito de liberdade, impedir a sua
negação.
Como
o faz? Mediante a distinção fenómeno-númeno. Essa distinção surge da
análise das possibilidades do conhecimento humano. Vejamos: uma vez que o
nosso conhecimento tem limites — não pode ultrapassar o plano dos
fenómenos — falar de limites é tornar legítimo pensar ou supor que há
algo para lá do que o nosso conhecimento pode atingir. Impede-se assim, a
redução da realidade ao plano dos fenómenos. É legítimo pensar que
existe um outro plano ou dimensão da realidade — o plano numénico ou
supra-sensível porque só assim faz sentido falar de "limites" do
conhecimento.
Ora,
se podemos pensar num plano da realidade que não é fenoménico podemos
pensar que há realidades que agem independentemente das leis naturais ou
necessárias. Como agir independentemente das leis naturais é a
característica essencial de uma acção livre, então podemos pensar que há
realidades que agem livremente. A liberdade não é um facto mas também
não podemos declará-la uma ilusão. Podemos pensá-la, ou seja, a ideia de
liberdade é logicamente possível, não é contraditória. Não é legítimo
pensar que só o mundo fenoménico é real. Logo é legítimo pensar que há
liberdade. Dada a distinção fenómeno--númeno (distinção entre o que se
pode conhecer e o que se pode pensar) o homem pode, enquanto ser
racional (inteligível, numénico) e não simplesmente sensível, pensar-se
como livre, i. e., como não estando na sua totalidade submetido a leis
naturais.
SÍNTESE
1 —
Não é legítimo dizer que só o mundo dos fenómenos é real: seria reduzir
a realidade aos limites do nosso poder de conhecimento.
2 —
Se podemos pensar que nem tudo é fenómeno podemos pensar ou supor que
há realidades que não estão submetidas a leis naturais (p. ex., o homem
enquanto númeno ou ser racional).
3 —
Assim sendo impede-se a negação da liberdade, ou seja, pode-se pensar
que,enquanto númeno, o homem age independentemente das leis naturais ou
necessárias.
A
distinção fenómeno-númeno impede a negação da liberdade, isto é, impede
a negação de acções não submetidas a leis naturais: a liberdade ou a
causalidade livre é pensável.
Esta
importante conclusão coloca-nos em condições de compreender como aquela
distinção permitirá solucionar o conflito especulativo da razão consigo
mesma.
5.1. A solução da "antinomia da liberdade" mediante a distinção fenómeno-númeno
Vimos
que a razão pura ao pretender resolver de uma forma demonstrativa o
problema da liberdade (há ou não há liberdade?) era capaz quer de negar
quer de afirmar a liberdade. E fazia-o em ambos os casos com base em
demonstrações aparentemente irrefutáveis. Quer a tese (há liberdade)
quer a antítese (não há liberdade) são o resultado de demonstrações
logicamente inatacáveis, embora se neguem uma à outra. Esta contradição
da razão deixa esta num impasse, não sabe a que conclusão dar o título
de verdadeira. Fica desorientada, à deriva. A distinção fenómeno-númeno
vem salvá-la desta desorientação e, passe a expressão, "pô-la na ordem".
A
solução kantiana da antinomia consiste não em considerar que uma das
afirmações é verdadeira e a outra falsa mas em dizer que nenhuma delas é
absolutamente falsa.
Consideremos
a tese que diz "não há liberdade" (por ser negativa tem o nome de
antítese). Esta afirmação é verdadeira se nos estivermos a referir ao
mundo dos fenómenos: neste plano reina a necessidade natural.
Consideremos a afirmação "Há liberdade". Uma vez que a distinção
fenómeno-númeno nos ensinou que a liberdade é pensável — podemos sem
contradição pensar que somos livres — deve-se alterar tal afirmação
demasiado peremptória transformando-a em "Podemos pensar que há
liberdade". Esta afirmação que já revela a consciência das limitações do
nosso conhecimento é verdadeira dado que podemos pensar — uma vez que a
realidade não é só o mundo natural ou fenoménico — que há realidades
que transcendem a dimensão submetida às leis naturais.
Kant
evita o choque, o conflito, entre estas duas afirmações ao dizer que
valem para diferentes domínios ou dimensões da realidade e não pretendem
valer para a realidade no seu todo. Se dizemos que não há liberdade
isso é legítimo se estivermos a referir-nos só ao mundo dos fenómenos;
se dizemos que podemos pensar que há liberdade isso é legítimo se não
estivermos a referir-nos ao mundo dos fenómenos mais sim a realidades
que transcendem esse plano e que embora incognoscíveis são inegávei.
5.2.
A distinção fenómeno-númeno é a condição que torna possível a passagem
ao uso prático da razão (à reflexão sobre a acção moral)
A
distinção fenómeno-númeno (distinção entre o que é cognoscível e o que é
incognos-cível mas, contudo, pensável) estabeleceu o domínio em que a
ciência se pode exercer legitimamente (o mundo dos fenómenos) e o
domínio em que ela não pode aventurar-se, sob pena de perder o direito
ao título da ciência (o mundo supra-sensível ou numénico). Solucionou o
conflito especulativo da razão teórica determinando que qualquer
aventura fora do plano espácio-temporal é uma extravagância de nefastas
consequências.
Se
essa função é importante o grande e fundamental objectivo da distinção é
permitir a passagem do uso teórico da razão ao uso prático, i. e., a
passagem da reflexão sobre as condições que tornam possível o
conhecimento científico à reflexão sobre o que é agir moralmente.
Kant
diz que "a liberdade é o fundamento da acção moral". Isto quer dizer
que não podemos falar de acção moral sem a suposição de que o homem é
livre.
Se
não for possível pensar que há acções livres, independentes das leis
naturais, i. e., se o conceito de liberdade for contraditório, não se
pode efectuar a passagem ao uso prático da razão, à reflexão sobre a
"experiência" moral.
Como
podemos pensar que o homem é númeno (ser racional, inteligível) e não
simplesmente fenómeno (ser empírico ou sensível) podemos então, sem
contradições, pensar que o homem é livre. Não se afirma que o homem é
livre mas impede-se a negação da liberdade. A liberdade é um conceito
logicamente possível. Poderá então Kant partir para a sua reflexão sobre
a acção moral.'1'
É
de notar ainda que ao salvaguardar a reflexão sobre a acção moral,
melhor dizendo, a própria possibilidade de acções morais, a distinção
fenómeno-númeno salvaguarda, contra os excessos especulativos da razão, a
credibilidade do conhecimento científico. Se ficássemos no impasse da
"antinomia da liberdade", indecisos entre "todos os fenómenos se
explicam por uma causalidade livre — há liberdade" e "todos os fenómenos
são efeitos de uma causalidade necessária — não há liberdade", a
ciência estaria em dúvida. Se a ciência consiste em explicar os
fenómenos a partir de causas necessárias, encadeadas umas nas outras —
não pode haver liberdade no mundo fenoménico pois isso implicaria uma
ruptura no encadeamento necessário dos fenómenos — não definir em que
plano a liberdade é possível e em que plano ela é impossível, tornaria
problemática de direito a fundamentação da ciência. Se a "antítese" é a
negação da possibilidade da moral, a "tese" é negação daquilo de cuja
possibilidade Kant nunca duvidou: a existência do conhecimento
científico da Natureza. A solução da antinomia declara falsas quer a
tese quer a antítese se elas pretenderem valer para a realidade em
geral; declara-as verdadeiras — com uma atenuação da afirmação "Há
liberdade" — se passarem a valer para domínios distintos.
Protege-se
a ciência de "pretensões inimigas" — as da razão "especulativa" e a
moral de atitudes redutoras — a redução do real ao cognoscível.
(1)
Podemos acerca do homem dizer sem contradição, apesar de não parecer,
que l — ele pode pensar que é livre e 2 — que ele não é livre. Com
efeito, enquanto númeno, i. e., enquanto ser racional, não submetido a
leis naturais, podemos pensar que ele é livre (com efeito, númeno é tudo
o que transcende o mundo natural não se regendo pelas leis desse
mundo). Em suma, dado que pode pensar que não é um ser simplesmente
natural o homem pode pensar que é livre. Enquanto fenómeno ou ser
natural, submetido a leis naturais — leis que negam a liberdade — o
homem não pode pensar que é livre: não é de facto livre.
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