Depois de ler alguns trechos da Ética de Spinoza, e constatar a concordância em alguns pontos dos escritos desse autor com os escritos de Nietzsche, busquei realizar uma rápida comparação, e notadamente por interpretação, muito do pensamento do segundo, é anunciado na obra do primeiro.
Detive-me especificamente na quarta parte da Ética de Spinoza, que trata “Da Servidão Humana ou da Força das Paixões”. Segundo seu pensamento, as paixões humanas não são boas nem más, mas naturais. O vício está em submeter-se às paixões, quando nos deixamos dominar por causas exteriores a nós. Temos no nosso interior, a força impulsiva que se manifesta no exterior. Quando o homem deixa agir sua natureza interior, é Deus agindo nele, por ele e para ele. É a expressão da verdadeira liberdade.
Assim, para Spinoza as concepções de bem e mal são relativas, pois que ele vincula o bem à utilidade (o que é útil para um, pode não ser para outro), àquilo que não é prejudicial ao homem. Aquilo que é mau, é o que vai contra a sua natureza, o que lhe traz prejuízo, e não é útil à sua conservação. Do mesmo modo, os conceitos de perfeição e imperfeição se vinculam a essa adequação da utilidade.(...) este Ser eterno e infinito que chamamos Deus ou Natureza, age com a mesma necessidade com que existe. (...) Portanto a razão ou causa por que Deus ou Natureza age ou existe, é uma e sempre a mesma. Não existindo para nenhum fim, ele não age, pois, também por nenhum; e como sua existência e ação, também não tem princípio nem fim. O que se chama uma causa final, aliás, não é senão o desejo humano, na medida em que é considerado como princípio ou causa primeira de uma coisa (Spinoza, 1965, p.222/223).
Ou seja, a nossa razão se fundamenta naquilo que nos é útil, que aumente nosso poder de ação, aí está a perfeição, por outro lado a imperfeição é o que diminui esse mesmo poder, tornando a razão escrava das paixões, e impedindo a sua livre atividade. E para ele, o homem só é livre quando conduzido pela razão. Nessa perspectiva, tanto a perfeição e a imperfeição, quanto o bom e o mau, não indicam eles nada de positivo nas coisas, consideradas em si mesmas, e não são senão modos de pensar ou noções que formamos porque comparamos as coisas entre si (Spinoza, 1965, p.224).
Quando Spinoza se refere que as paixões humanas podem impedir o alcance à felicidade, se refere a falta de reconhecimento, na afirmação daquilo que lhe é natural. Pois, quando o homem compreende e reconhece que tudo está ordenado de acordo com as Leis da Natureza (Deus), conseguirá afirmar tudo o que lhe acontece, pois que a razão o direciona a amar a si mesmo, com aceitação incondicional, valorando a sua vida nessa afirmação.
Nietzsche (2004, p. 78,) conforme seu enunciado, vai ao encontro de Spinoza, na referência ao homem pela busca da felicidade, no uso de suas próprias leis que lhe são inerentes: ao indivíduo, enquanto busca sua felicidade, não deve dar prescrições sobre o caminho para a felicidade: pois a felicidade individual brota de leis próprias, desconhecidas de todos, e preceitos externos podem apenas inibi-la, impedi-la.Como a Razão nada reclama que seja contra à Natureza, pede, pois, que cada um ame a si mesmo, procure o que lhe é realmente útil, deseje tudo o que realmente conduz o homem a uma maior perfeição e, falando absolutamente, que cada qual se esforce por perseverar no seu ser tanto quanto possa. (...) senão segundo as leis da sua própria natureza. (...) Há, pois, fora de nós, muitas coisas que nos são úteis e que, por isso mesmo, devemos desejar. Entre estas, o pensamento não pode inventar senão aquelas que convêm inteiramente com a nossa natureza (Spinoza, 1965, p. 240, 241).
A liberdade do homem está no desenvolvimento de todas as suas possibilidades, ou seja, as possibilidades ditadas pelo nosso interior, pelo nosso querer, pela nossa vontade de potência, como diria Nietzsche, as circunstâncias externas é que podem nos impedir, nos limitar e condicionar.
A virtude está na ação da nossa causa interna, nos nossos sentimentos, atos e pensamentos. É a passagem da paixão (estado passivo) à ação (estado ativo), dando vazão a nossa interioridade que é o que faz a nossa existência. Dessa forma, o vício submeter-se às paixões, não é um mal, mas uma fraqueza, que acaba por minar as energias internas, que trazem em si a potencialidade de realização do homem, no sentido de existir, de pensar e de agir, Do que segue, que a virtude não é um bem, mas uma força potente, que dá autonomia para a existência. E é na atividade dessa força que está a liberdade do indivíduo.
Do mesmo modo, Nietzsche nos coloca que as paixões, os desejos e a vontade, se referem à vida, à nossa força vital, não especificamente ao bem ou ao mal, isso não passa de invenção, criação da moral dos fracos. Nietzsche nos posiciona além do bem e do mal. Bem e mal não existem, foram incutidos em nossas mentes com o passar do tempo.Por virtude e potência entendo a mesma coisa, (...) a virtude, na medida em que se refere ao homem, é a essência mesma ou a natureza do homem na medida em que este tem o poder de fazer certas coisas que se podem conhecer unicamente pelas leis da sua natureza (Spinoza, 1965, p.226).
Tudo o que existe é vontade de potência, de vida. Ele defende os instintos vitais, o que ele chama de vontade de potência, ou seja, os valores que dão afirmação à vida, que deixam fluir as energias que afloram do nosso interior. Aí está a verdadeira liberdade da razão para Nietzsche, sem submissão ao que está condicionado no exterior. É o espírito livre, agindo e realizando, ultrapassando suas fraquezas, sua resignação, aspirando à vida autêntica, dizendo não ao tu deves, e sim ao eu quero, a sua vontade de poder.
Coincidentemente na Ética de Spinoza, na Proposição XX (p.242), lemos que quanto mais cada qual se esforça por procurar o que lhe é útil, isto é, por conservar o seu ser, e quanto mais tem este poder, tanto mais é dotado de virtude; e ao contrário, na medida em que é negligente na conservação do que lhe é útil, isto é, do seu ser, é impotente...., se devemos propriamente possuir virtudes, temos apenas aquelas que podem entrar em melhor acordo com nossas inclinações mais secretas e mais acariciadas, com as nossas mais urgentes necessidades, e andamos a buscá-las em nossos labirintos, nos quais, como bem se sabe, emaranham-se muitas coisas e outras chegam a perder-se inteiramente (Nietzsche, 2001, p. 167).
Para Nietzsche, a Natureza é rica, é poderosa, não há limites para ela. O homem que é livre, dá vazão à sua natureza, esse poder livre e ativo que impulsiona, aceitando, afirmando com emoção o seu destino, realizando a síntese das oposições, comungando com elas numa unidade. E nessa síntese está o apolíneo (Apolo-deus da razão, da ordem) e o Dionísíaco (Dionísio-deus da aventura, da música, da desordem), que na união de suas forças, constituem nossa realidade à serviço da nossa existência. No pensamento de Spinoza (Proposição XXIX, p..247), encontramos semelhante referência a essa comunhão de forças: Uma coisa singular qualquer cuja natureza é inteiramente diversa da nossa, não pode favorecer nem reduzir a nossa potência de agir, e, absolutamente, coisa alguma pode ser boa ou má para nós, se não tem algo de comum conosco. E o que nos é comum é o que condiz com nossa natureza, e isso verdadeiramente é o que se constitui como um bem para nós.
Ainda quanto as concepções de bem e mal, conforme Nietzsche, no Livro II de Aurora, tudo quanto julgamos bem ou mal está calçado em sentimentos e significados pré-estabelecidos. E por isso fazemos coisas tão contrárias com nossos sentimentos interiores. Spinoza exemplifica muito bem, como os sentimentos influenciam a nossa força ou fraqueza interior, no estado de movimento ou repouso, ou seja, de potência e impotência, e também nos evidencia a idéia de bom ou mau, através dos sentimentos de alegria ou tristeza:
A alegria (...), é uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é acrescida ou favorecida; a Tristeza, ao contrário, uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é diminuída ou reduzida; e, por conseqüência (...), a Alegria é boa diretamente, etc (1965, Proposição-Demonstração-XLI, p.262).
Spinoza, demonstra muito bem em algumas outras proposições, os outros afetos que de certa maneira causam danos ao homem, entre eles a humildade, o arrependimento, a esperança e o temor. Daí Nietzsche nos dizer para fecharmos os ouvidos aos lamentadores: se nos deixarmos ensombrecer pelos lamentos e dores dos outros mortais e cobrirmos de nuvens o nosso próprio céu, quem suportará as conseqüências desse entristecimento?(2004, p.111). Aí vemos que os pensamentos de ambos os filósofos, convergem plenamente quanto aos sentimentos gerirem nossa potência ou impotência no agir.
A superação humana para Nietzsche, é quando o homem atinge o estado superior, de um super-homem, que se faz por si mesmo, e se afirma em si mesmo. O mal nessa superação, não é mais do que um bem necessário a ser afirmado e amado. É o poder da individualidade, num sinal de liberdade, de que tudo é possível. O nosso dever passa a ser o nosso querer. Pois do nosso querer nascem todas as possibilidades para o acontecer, e isso é um bem. Buscando em Spinoza (Proposição LXIII, p.282) uma referência a esse enunciado, vemos que todo o ato que é praticado com o sentimento de temor não é bom, pois não se trata de um desejo adequado, não há afirmação, mas simulação. Assim, evitar o mal, para praticar o bem, sendo coagido pelo temor, é uma fraqueza. Portanto, não é um bem, pois vem da impotência do sentimento que não deixa fluir as leis naturais da ordenação da vida.
Para Spinoza, a tendência para o bem vem naturalmente de um conhecimento adequado, de uma alegria sem excessos, da força vital que leva ao bem diretamente, e nesse sentido, pode-se compreender que evita o mal para realizar a perfeição. Pois, o conhecimento do mal é inadequado (Proposição LXIV,p.284). Assim a maior virtude é o conhecimento da adequação dos nossos desejos (sentimentos e emoções) à nossa natureza, e isso vem corresponder a conhecer Deus. Pois que Deus para ele, é a própria natureza enquanto causa de si mesmo, e o mundo é Deus como efeito de si mesmo, como modificação de si mesmo, como sistema de modos (em referência à proposição XXIX-Primeira Parte- De Deus).
Em Nietzsche, o verdadeiro homem, o Super-Homem, não se separa de Deus. O que ele nega é o Deus cristão (o tu deves), e por isso ele diz ser necessário afirmar sua morte, para recuperar a unidade do homem (o eu quero). Deus não lhe é um ser exterior. Quando há a separação do homem e Deus é que temos a religião, pois a religião significa religar, e nessa busca de religar o homem à Deus, o homem acaba perdendo-se a si mesmo, visto que se distancia de sua divindade. E nessa distância, sua vontade de potência enfraquece, e o homem passa a renunciar a própria vida. É por isso que só o Super-Homem terá as condições de manter essa unidade e afirmar sua existência, com amor, “amor fati”. Quando o homem afirmar-se como Super-Homem estará afirmando Deus como Ser Supremo. Essa, para Nietzsche, é a verdadeira divindade.
Dessa pequena exposição, para concluir, podemos constatar a proximidade do pensamento dos dois autores em vários pontos. O panteísmo, o determinismo (leis da natureza), o conhecimento vinculado à virtude (potência no agir humano), a eliminação do problema do mal, que se verifica em Spinoza, também podemos interpretar como constando nas entrelinhas, no pensamento nietzscheano. E que Spinoza foi um grandioso precursor numa crítica tão bem elaborada à moral vigente de sua época, detendo-se na interpretação das Sagradas Escrituras, o que originou vários seguidores nessa direção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário