À
medida que o movimento libertário e as ideias associadas a ele vão ganhando
maior proeminência ao redor do mundo, o surgimento de ataques, calúnias e
caricaturas passa a ser inevitável.
Libertários, dizem nossos críticos, são antissociais e preferem o
isolamento à interação com terceiros.
São gananciosos e indiferentes para com os pobres. São ingênuos quanto a terroristas e inimigos
externos, e se recusam a apoiar invasões de "países perigosos" (e a subsequente
chacina de populações inocentes).
Estas
caricaturas e concepções errôneas podem ser refutadas pela simples definição do
próprio conceito de libertarianismo.
Todo o ideal libertário se baseia em um princípio moral fundamental: a
não-agressão de inocentes. Ninguém deve
iniciar força física contra um inocente.
Muito radical.
É
óbvio que, não apenas não há nada de antissocial nesta ideia, como também ela
representa a própria negação de tudo
o que é antissocial, pois a interação pacífica é justamente o cerne de uma
sociedade civilizada.
À
primeira vista, praticamente ninguém pode se opor ao princípio da
não-agressão. São poucas as pessoas que
abertamente defendem atos de agressão contra pessoas pacíficas e
inocentes. A diferença é que os
libertários são francos e eloquentes quanto a isso, e aplicam este princípio em
todas as esferas da vida, para todas as pessoas. Nossa visão vai muito além de meramente
sugerir que o estado não pode incorrer em violações grosseiras das leis
morais. Nós afirmamos que o estado não
pode efetuar nenhum ato que seria proibido a qualquer indivíduo. Não há meio termo para as normas morais: ou
elas existem ou não existem.
Exatamente
por isso não podemos defender o sequestro estatal apenas porque o governo rotula
esta prática de "alistamento militar obrigatório". Não podemos defender o encarceramento de
pessoas que ingeriram as substâncias erradas apenas porque o governo rotula
esta prática de "guerra contra as drogas".
Não podemos defender o roubo e a espoliação apenas porque o governo
rotula esta prática de "tributação". Não
podemos defender homicídios em massa só porque o governo rotula esta prática de
"política externa". Não podemos defender
privilégios para grandes empresas só porque o governo rotula esta prática de
"políticas de proteção à indústria". Não
podemos defender a destruição do poder de compra da moeda só porque o estado
rotula esta prática de "política monetária".
Não podemos defender restrições à liberdade de empreendimento só porque
o governo rotula esta prática de "regulamentação". E não podemos defender o parasitismo só
porque o governo rotula esta prática de "políticas de bem-estar social".
Murray
Rothbard, que era Ph.D. pela Universidade de Columbia, NY, dizia que você pode
descobrir qual é a posição libertária a respeito de qualquer questão ao
simplesmente imaginar uma quadrilha de criminosos efetuando a ação analisada.
Em
outras palavras, o libertarianismo pega certos critérios morais e políticos que
são defendidos por todas as pessoas decentes, e simplesmente os aplica de forma
consistente e inflexível.
Por
exemplo, as pessoas se opõem a monopólios porque temem o aumento de preços, a
redução na qualidade dos produtos e serviços, e toda a centralização de poder
decorrentes deste arranjo. O libertário
apenas aplica esta preocupação em relação a monopólios ao próprio estado. Afinal, empresas privadas operando no mercado
— um arranjo que supostamente devemos temer — não podem simplesmente sair
cobrando o quanto quiserem por bens e serviços.
Os consumidores podem simplesmente trocar de ofertante, ou deixar de
usar um determinado produto e passar a usar um substituto mais próximo. Da mesma maneira, empresas não podem reduzir
a qualidade de seus produtos sem perder consumidores, os quais poderão
encontrar concorrentes ofertando bens e serviços mais satisfatórios.
Já
o estado pode, por definição, cobrar do público o quanto ele quiser pelos
"serviços" que ele oferta. Os cidadãos
— os súditos do estado — têm de aceitar qualquer nível de qualidade que o
estado se digne a ofertar. E jamais pode
existir, por definição, qualquer concorrente ao estado, uma vez que o estado é
definido como o detentor do monopólio da compulsão e da coerção em seu
território.
Com
suas guerras, seus genocídios, suas atrocidades totalitárias e toda a miséria
criada por suas políticas intervencionistas, o estado já demonstrou ser, de
longe, a mais letal instituição da história.
Seus crimes menores incluem todo o seu endividamento, cujo pagamento dos
juros ele impôs à população; as burocracias que se auto-perpetuam e se
alimentam da fatia produtiva da população; e todo o desperdício de recursos
escassos — os quais poderiam ter sido utilizados para melhorar o padrão de
vida da população por meio da formação de capital — em obras e projetos
arbitrários e de motivação política.
No
entanto, o estado, apesar de todos os seus fracassos, consistentemente usufrui
aquele benefício da dúvida que ninguém concederia a pessoas e empresas no setor
privado. Por exemplo, a educação estatal
produziu resultados que, na mais complacente das hipóteses, podem ser
classificados de deploráveis, não obstante o crescente volume de dinheiro
direcionado para este setor. Houvesse o
setor privado gerado um desastre semelhante, a gritaria e as denúncias contra
"os empresários ricos que estão tornando nossas crianças ignorantes" jamais
acabariam. Porém, quando é o setor
público quem gera resultados medonhos, tudo o que ouvimos é o silêncio. E o silêncio só é interrompido pelas demandas
de que os pagadores de impostos deem ainda mais dinheiro e recursos para o
estado. Se uma empresa privada fracassa,
ela vai à falência. Se o estado
fracassa, ele pede (e ganha) mais dinheiro.
Se
uma empresa privada comete um erro grave, o mundo vem abaixo. Investigações aprofundadas, reportagens
histéricas da mídia e indignações públicas parecem não ter fim. Já quando o estado faz lambança, não há
absolutamente nenhum interesse na história, e quase ninguém ouve nada a respeito.
Da
mesma forma, quando os tribunais estatais obrigam pessoas inocentes a ter de
tolerar atrasos intermináveis e a arcar com gastos infindáveis, não há
investigações, não há denúncias e não há apelos por justiça. Quando os ricos e famosos são obviamente
favorecidos pelo sistema, as pessoas resignadamente aceitam o fato como
corriqueiro, uma inevitabilidade.
Enquanto isso, empresas de arbitragem privada, rápidas e eficientes,
prosperam na surdina, silenciosamente preenchendo o vazio criado pelo péssimo
sistema estatal — e dificilmente alguém nota ou se importa, muito menos
aprecia estas melhoras geradas em nosso bem-estar.
Quando o estado fracassa
abjetamente em cumprir com a mais mínima qualidade aceitável algum serviço que
ele se propôs a fazer — como a segurança —, as pessoas veem isso como algo
rotineiro. Se pessoas morrem em
decorrência da falta de segurança — inclusive na área de infraestrutura —
gerada pelo estado, são apenas coisas da vida.
Mas quando uma empresa privada oferece um serviço que deixa a desejar,
todos os tipos de impropérios e ameaças judiciais são proferidos por seus
desapontados clientes.
No fundo, esta assombrosa
diferença entre os padrões morais e éticos exigidos do estado e do setor
privado tem suas raízes não apenas nos homens que compõem o aparato estatal, mas
também naqueles que lhes dão sustentação intelectual e ideológica.
Os moralistas romanos da
antiguidade, e os humanistas da Renascença que vieram depois, preconizavam
abertamente que os governantes tinham de possuir um arranjo especial de
virtudes morais. Tais virtudes eram,
acima de tudo, as quatro virtudes cardinais (cardinal vem do latim e significa
"essencial"; logo, todas as outras virtudes dependiam destas quatro): coragem,
justiça, temperança e sabedoria. Embora
todos os homens fossem exortados a cultivar estas virtudes, os príncipes, em
particular, deveriam ir além e apresentar outras mais, como nobreza e
generosidade. Estes temas foram desenvolvidos
por Cícero em seu ensaio
De Officiis e
por Sêneca em seus ensaios
Sobre
a Clemência e
Sobre
Benefícios.
Os humanistas anteciparam
a tese que futuramente viria a ser defendida por Maquiavel: a de que tem de
haver uma divisão entre, de um lado, a moralidade e, do outro, qualquer postura
e atitude que seja conveniente para o príncipe.
Os humanistas responderam a esta tese alertando que, mesmo que a
perversidade principesca não fosse punida em vida, a punição divina na próxima
vida seria certa e cruel.
O que fez com que Maquiavel
se destacasse tão incisivamente foi o seu radical rompimento com esta visão
tradicional das obrigações morais do príncipe.
Como afirmou Quentin Skinner, o grande estudioso de Maquiavel, "É só quando
analisamos detidamente O Príncipe que
descobrimos como estes tradicionais aspectos da moralidade humanista foram violentamente
subvertidos".
O príncipe, diz
Maquiavel, tem sempre de "estar preparado para agir imoralmente sempre que for
necessário". E "para manter seu poder",
ele — não apenas algumas vezes, mas sim frequentemente — será obrigado a
"agir traiçoeiramente, cruelmente e impiedosamente".
Dado que a maioria das
pessoas jamais irá interagir pessoalmente com o príncipe, Maquiavel forneceu o
seguinte conselho ao governante: "Todo mundo vê aquilo que você aparenta ser",
mas "poucos sabem diretamente quem você realmente é". "Um habilidoso enganador", continuou
Maquiavel, "sempre encontrará uma multidão de pessoas que se deixarão ser
enganadas".
Já dá para imaginar que
tipo de pessoa o príncipe será.
A visão de Maquiavel
frequentemente é resumida como "os fins justificam os meios". Embora tal destilação não capture todos os
aspectos do pensamento de Maquiavel, é fato que esta concisa descrição irrita
os professores de teoria política.
Ademais, se o fim em questão é a preservação do poder do príncipe, então
"os fins justificam os meios" não é uma caracterização injusta do conselho de
Maquiavel.
E é exatamente a este
princípio que o estado e seus ideólogos recorrem para justificar seu não
cumprimento de todas aquelas práticas que as pessoas decentes consideram morais
e boas. Friedrich Hayek certa vez
escreveu que,
Na
ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado
a negação de toda a moral. Na ética
coletivista, ele se torna a regra suprema; não há literalmente nada que o
coletivista coerente não deva estar pronto para fazer, desde que contribua para
o "bem da comunidade", porque o "bem da comunidade" é para
ele o único critério que justifica a ação. A ética coletivista não conhece
outros limites que não os da conveniência — a adequação do ato particular ao
objetivo que se tem em vista.
Praticamente todas as
pessoas hoje aceitam, ao menos implicitamente, a alegação de que o estado opera
em uma dimensão moral paralela, na qual as regras morais tradicionais não são
aplicáveis. Outros vão além e afirmam
que o estado está acima da moralidade que conhecemos. Mesmo que tais pessoas não utilizem as
formulações verbais de Maquiavel, de alguma forma elas creem ser desarrazoado
exigir que o estado e seus funcionários se comportem da mesma maneira que o
resto de nós. O estado pode se defender
e se preservar recorrendo a métodos que nenhuma empresa privada, nenhuma
organização, nenhuma família e nenhum indivíduo poderiam utilizar para sua
própria preservação. E aceitamos isso como
algo normal.
Esta é simplesmente uma
formulação mais geral do fenômeno descrito anteriormente, que diz que poucas
pessoas se espantam quando o estado incorre em um comportamento que seria
considerado uma monstruosidade moral caso fosse efetuado por qualquer indivíduo
ou entidade.
Por fim, algumas pessoas
poderão discordar e contra-argumentar dizendo que o aparato coercivo do estado
é essencial para manter a ordem na sociedade, de modo que não podemos insistir
fortemente no purismo libertário ao analisarmos seu comportamento. Afinal, algumas vezes o estado tem de fazer
aquilo que ele tem de fazer.
Só que absolutamente
todos os "serviços" que estado fornece já foram no passado ofertados de maneira
não-coerciva. A questão é que nós
simplesmente não somos estimulados a estudar e a aprender esta história, e a
estrutura de ensino que involuntariamente adotamos desde os nossos primeiros
dias na escola tornou nossa imaginação estreita e tacanha demais para conceber
essa possibilidade.
Maquiavel lançou uma
revolução em prol do estado. A nossa
revolução é contra, mas sempre a favor da paz, da liberdade e da prosperidade.
Lew Rockwell é o chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.
Tradução de Leandro Roque
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