Resumo: O artigo faz uma breve análise da ética aristotélica a partir do livro Ética a Nicômaco de Aristóteles
I – Breve biografia de Aristóteles
Aristóteles nasceu em 384/383 a. C., em Estagira, antiga cidade da
Macedônia, situada hoje na Grécia, na região da Calcídica, no golfo do
rio Estrimão. A Macedônia é uma região geográfica e histórica da
península dos Bálcãs, no sudeste da Europa, cujos limites são difíceis
de serem estabelecidos. Atualmente, a região macedônia é dividida entre a
Grécia, a República da Macedônia, a Bulgária, a Albânia e a Sérvia.
O pai de Aristóteles, chamado Nicômaco, era médico, tendo servido ao
rei Amintas da Macedônia, pai de Filipe II da Macedônia, sendo que este
foi o pai de Alexandre III (o Grande ou o Magno). Aristóteles foi
preceptor de Alexandre III.
No ano de 366/365 a.C. Aristóteles, já órfão, viajou para Atenas e
ingressou na Academia platônica, nela permanecendo por vinte anos. Com a
morte de Platão, a direção da Academia foi assumida por Espêusipo, o
que levou o Estagirita a abandoná-la, por causa da incompatibilidade de
suas ideias com a do novo diretor, partindo, então, para Atenas, na Ásia
Menor.
Em Atenas, Aristóteles, juntamente com Xenócrates, estabeleceu-se em
Axo (costa de Trôade, antiga região na parte noroeste da Anatólia),
fundando juntamente com os platônicos Erasto e Corisco uma escola.
Depois foi para Mitilene (Ilha de Lesbos), talvez influenciado por
Teofrasto (sucessor de Aristóteles). Afirma-se que em Axo Aristóteles
ministrou cursos sobre as disciplinas filosóficas e que em Mitilene
dedicou-se à suas pesquisas de ciências naturais.
Em 343/342 a.C., atendendo ao convite do rei Felipe II da Macedônia,
Aristóteles assumiu a educação do jovem Alexandre III (o Magno ou
Grande), então com trezes anos de idade, permanecendo na corte
macedônica até quando este rei subiu ao trono, por volta de 336 a.C.
Findo este período, em 335/334 a.C., partiu Aristóteles para Atenas,
fundando uma escola próxima a um pequeno tempo sagrado dedicado a Apolo
Lício, que por isso recebeu o nome de Liceu. Esta escola recebeu também o
nome de Perípatos (perípatos em grego significa passeio), porquanto o
Estagirita ensinava seus seguidores, os peripatéticos, enquanto passeava
por entre os jardins. Afirma-se que esses foram os anos mais fecundos
na sistematização do pensamento filosófico e científico de Aristóteles, a
ponto de ter ofuscado a Academia platônica.
Finalmente, em 323 a.C., com a morte de Alexandre III, Aristóteles foi
considerado réu por ter sido o preceptor deste rei, embora formalmente
tenha sido acusado de impiedade por ter escrito um poema em honra de
Hérmias, que somente seria digno de um deus. Exila-se então o Estagirita
em Cálcis, deixando Teofrasto na direção do Liceu, morrendo pouco tempo
depois, em 322 a.C..
II – Os escritos de Aristóteles
Dividem-se em dois grandes grupos: os exotéricos (destinados ao grande
público) e os esotéricos (destinados aos seus seguidores, sendo
patrimônio do Liceu).
Os escritos exotéricos foram escritos na forma dialógica da tradição
socrática. São eles: 1) Grilo ou Sobre a Retórica; 2) Protrético e Sobre
a Filosofia; 3) Acerca da Ideias; 4) Acerca do Bem; 5) Eudemos ou sobre
a alma.
Os escritos esotéricos versam sobre variados temas. Sobre filosofia
tem-se Organon, título este que mais tarde designou o conjunto dos
tratados de lógica, sendo 6) Categorias; 7) De interpretatione; 8)
Analíticos primeiros; 9) Analíticos segundos; 10) Tópicos e Refutações
sofísticas. Sobre filosofia natural: 11) Física; 12) O Céu; 13) A
geração e a corrupção; 14) A Meteorologia. Sobre psicologia: 15) Sobre a
Alma; 16) Parva Naturalia. Sobre metafísica: 17) Metafísica (são 14
livros). Sobre filosofia moral e política: 18) Ética a Nicômaco; 19) A
Grande Ética; 20) A Ética a Eudêmio; 21) Política; 22) Poética; 23)
Retórica. Sobre as ciências naturais: 24) História dos Animais; 25) As
partes dos animais; 26) O movimento dos animais; 27) A geração dos
animais.
III – Metodologia de leitura das obras de Aristóteles
Com o intuito de facilitar a compreensão do pensamento de Aristóteles,
e de sua evolução, foram concebidos dois métodos de leitura e análise
dos escritos de Aristóteles: os métodos sistemático-unitário e
histórico-genético.
O primeiro foi considerado anti-histórico, sob a alegação de que ele
não permitiria compreender a influência do contexto histórico na
formação de uma unidade literária na produção intelectual do Estagirita,
razão pela qual passou a ser contestado a partir da década de 20 do
século passado.
O segundo era voltado para a reconstrução da parábola evolutiva de
Aristóteles, isto é, da evolução do seu pensamento, cuja síntese pode
ser traduzida numa história de desconversão do platonismo e da
metafísica e uma conversão ao naturalismo e ao empirismo. Esse método,
criado por Werner Jaeger, teve grande prestígio porquanto permitiu
revelar várias nuances do pensamento aristotélico.
Atualmente os estudiosos acreditam não ser mais possível utilizar o
método histórico-genético, tampouco o sistemático-unitário. Sustentam
que as obras de Aristóteles devem ser lidas e estudas sem se preocupar
em identificar uma unidade literária, porquanto entendem haver uma
unidade filosófica de fundo que permeia toda a produção intelectual
deste filósofo.
IV – Platão e Aristóteles: alguns pontos de convergência e de divergência
Aristóteles foi discípulo de Platão e por esta razão seus pensamentos
foram fortemente influenciados por seu mestre. As divergências de
pensamentos do Estagirita em relação a Platão não autorizam afirmar que
Aristóteles foi um ferrenho opositor do pensamento platônico. Há
divergências sim, contudo, vale lembrar a afirmativa de Diógenes Laércio
de que “Aristóteles foi o mais genuíno dos discípulos de Platão”, o que
nos leva a concluir que a convergência de pensamentos destes filósofos é
maior do que as divergências.
Afirmam Reale e Antiseri que “as grandes diferenças entre os dois
filósofos não estão no domínio da filosofia, mas sim na esfera de outros
interesses”. (1990: 177) Entre algumas delas podem ser citadas as três
seguintes:
Aristóteles buscou uma rigorização do discurso filosófico, o que fez
pelo abandono do emprego de argumentos místico-religioso-escatológicos,
tão ao gosto de seu mestre. Platão, provavelmente influenciado pela
religião órfica (religião de mistério do antigo mundo grego, fundada
pelo poeta Orfeu, que teria ido ao hades) estribou-se em argumentos
vinculados à crença e a fé. Já o Estagirita buscou afastar-se desta
perspectiva em seus escritos esotéricos, valendo-se do logos (razão e
linguagem) para a sistematização do seu pensamento.
Outra diferença consiste no fato de Platão ter seus interesses
voltados essencialmente para as questões puramente filosóficas (exceção
era o seu interesse pela medicina), enquanto Aristóteles tinha interesse
também pelo estudo das ciências empíricas.
Além dessas duas diferenças, pode-se afirmar que os métodos empregados
por Platão - a ironia, a maiêutica socrática e a poesia –
caracterizaram, conforme afirmam Reale e Antiseri “um discurso sempre
aberto e um filosofar que era como que uma busca sem descanso”
(1990:178). Consequência disso foi a construção de um sistema filosófico
flexível, sem uma sistematização fixa e organicamente articulada.
Em sentido oposto, o método empírico científico empregado por
Aristóteles permitiu que este filósofo fizesse uma sistematização
orgânica estável e fixa dos seus estudos de filosofia e das ciências
naturais, delimitando-se de forma mais estática os quadrantes da
metafísica, física, psicologia, ética, política, estética e lógica.
V – A ética aristotélica e a ética platônica: o problema das fontes e dos métodos
Como convém viver? Quais os verdadeiros bens da vida e como
classificá-los hierarquicamente? A Ética de Aristóteles se debruça sobre
essas grandes indagações.
A ética antiga tem dois grandes modelos, a ética socrático-platônica e
a ética aristotélica. Muitos veem em Aristóteles o fundador da Ética,
isso por causa da sistematização realizada por este filósofo, que
inseriu esse ramo do conhecimento no quadro geral das ciências, modelo
adotado pela posteridade.
Não obstante a importância da ética aristotélica, ela não pode ela
“ser pensada historicamente fora de sua essencial dependência da Ética
platônica”, segundo afirma Pe. Henrique C. de Lima Vaz (2006:109). Isso
porque Aristóteles viveu vinte anos na Academia e recebeu da filosofia
platônica os grandes temas e problemas de sua investigação.
Segundo os estudiosos, são várias as diferenças no estudo do
pensamento ético de Aristóteles e de Platão. Para os objetivos e limites
deste trabalho, vale destacar aquelas relativas às fontes e ao método
empregado por estes filósofos.
As fontes dos escritos de Platão são fontes originais (“Diálogos”),
estando praticamente intactas. Já o método empregado por este filósofo
para a construção e elaboração de seus pensamentos foi o da argumentação
na forma dialógica.
Quanto às fontes de Aristóteles, a questão é complicada. Há os textos
exotéricos, cujo método assemelha-se ao dialógico de Platão, os quais
deixaram de ser copiados e hoje se tem apenas fragmentos doxográficos,
diferentemente dos fragmentos. Há também os esotéricos, que seguiram
metodologia diferente, já que não foram redigidos diretamente por
Aristóteles, mas são notas de aulas os seus discípulos.
VI – Vetores do pensamento ético de Aristóteles: práxis individual e práxis social
Serão apresentadas com base na obra escolar de Aristóteles, ou seja,
de acordo com os escritos esotéricos. Os principais textos sobre a Ética
Aristotélica ou Filosofia Prática Aristotélica são: o catálogo “Das
virtudes e vícios” (considerado inautêntico) e os três cursos “Ética a
Eudemo ou Ética Eudêmia” (EE – 4 livros); “Ética de Nicômaco ou Ética
Nicomaquéia” (EN – 10 livros); “Grande Ética ou Magna Moralia” (GE ou MM
– 2 livros).
A primeira grande característica da Ética aristotélica em relação à
Ética platônica é a definição de seu objeto e do método de sua
investigação. Aristóteles rejeita as teorias platônicas das Ideias na
forma original e da univocidade do objeto (sentido unívoco).
Consequentemente admite a teoria da plurivocidade do objeto (pluralidade
de sentidos) com a necessária divisão das ciências e a determinação do
método específico para cada uma delas.
Enquanto a razão em Platão é unívoca, em Aristóteles é
pluridiversificada, admitindo este filósofo a diferenciação do saber
científico de acordo com a diferenciação dos objetos e dos métodos
específicos de sua investigação. Aristóteles faz uma divisão ternária
dos saberes (teórico, prático e poiético) que se torna a divisão
clássica das ciências, na qual a filosofia prática (Ética e Política) se
assentará e terá a delimitação do seu método.
O fundamento antropológico da Ética e da Política aristotélicas reside
na circunstância de que o homem é um animal dotado de logos (razão e
linguagem), bem como de paixões e inclinações.
A finalidade das ciências teoréticas é a pura contemplação da verdade,
sendo que seus objetos não estão sujeitos a mudanças. Já o objeto das
ciências práticas está sujeito a mudanças por causa da liberdade e
outros fatores, pois será formado em torno da opinião que apresente
maiores títulos de razoabilidade ou racionalidade. Já as ciências
poiéticas tem a finalidade de produzir um determinado resultado.
O fim das ciências teoréticas e poiéticas é a perfeição do objeto,
enquanto o escopo das ciências da práxis ou da prática é, segundo Pe.
Vaz a “perfeição do agente pelo conhecimento da natureza e das condições
que tornam melhor ou excelente o seu agir (práxis) (2006:117). A Ética é
a ciência prática que tem por objeto a praxis.
A estrutura das ciências práticas converge para a Política (lato
sensu) dentro da qual se incluem a ética (praxis individual) e a
política (praxis social). A finalidade da política é a eudaimonia
(arete) que no sentido usual significa felicidade (sentimento de
bem-estar ou satisfação do agente), mas que Pe. Vaz afirma ser
“excelência ou perfeição resultante no agente da posse do bem ou bens
que nele realizam melhor sua capacidade de ser bom”. (2006:118-119).
A Ética de Aristóteles, como informado no início teste tópico,
procurou responder às seguintes perguntas: quais os verdadeiros bens da
vida e como classificá-los hierarquicamente? Como devemos viver? De
acordo com a tradição ética grega, os verdadeiros bens da vida são
aqueles que trazem a verdadeira eudaimonia, sendo que o bem mais
perfeito é aquele que traz a mais perfeita eudaimonia.
Para Aristóteles, a ética, enquanto ciência prática, não investiga a
virtude em si, mas sim a virtude enquanto fonte criadora da eudaimonia.
Na Ética a Nicômaco, o Estagirita empreende então um estudo das
virtudes, dividindo-as da seguinte forma: virtudes éticas (morais) e
virtudes dianoéticas (intelectuais).
Aristóteles concebe as virtudes éticas como mediania (meio-justo),
cujas condições subjetivas são a voluntariedade, a deliberação, a
escolha e responsabilidade. Para este filósofo, a justiça é a principal
virtude ética. Já as virtudes dianoéticas são a filosofia, as artes e a
sabedoria prática.
VII -Elementos gerais da Ética a Nicômaco
Aristóteles divide a alma em duas partes. A primeira é a irracional é
caracteriza-se por não respeitar as regras, subdividindo-se numa parte
puramente vegetativa (incapaz de ser sede de qualquer virtude) e noutra
parte apetitiva (que participa de certa forma da parte racional).
A segunda parte da alma é a racional é caracteriza-se por obedecer as
regras. A virtude participa desta parte da alma, subdividindo-se em duas
espécies: virtudes do entendimento (exercidas pela parte racional
propriamente dita) e virtudes exercidas pela razão em acordo com a parte
apetitiva.
As virtudes éticas são adquiridas pelo hábito (superação do
intelectualismo platônico de que o conhecimento da virtude por si só
fazia o homem virtuoso), enquanto as virtudes dianoéticas são fruto do
ensinamento.
Aristóteles elaborou um catálogo com doze virtudes éticas: coragem,
temperança, liberalidade, magnificência, magnanimidade, equanimidade,
placidez, amabilidade, veracidade, jovialidade, pudor e justiça.
Elaborou a teoria da mediania para a aquisição destas virtudes.
O livro V da Ética a Nicômaco é dedicado à justiça, principal virtude
ética e que, segundo Pe. Vaz “constitui, sem dúvidas, um dos textos
fundadores de toda a reflexão ocidental sobre Moral e Direito”.
(2006:124).
VIII - Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles
Já no primeiro parágrafo da sua Teoria da Justiça, Aristóteles deixa
claro que para ele a justiça é um meio-termo, que o ato justo situa-se
entre dois extremos: o excesso e a carência. Adota este filósofo
inicialmente o conceito de justiça universal, também chamada de justo
total, que em síntese consiste em fazer, agir e desejar atos justos. A
conduta oposta caracteriza a injustiça.
Assim, segundo a justiça universal, justo é aquilo que é conforme a
lei e consoante o bem comum. Injusto é aquilo que é contrário a lei,
iníquo e contrário ao bem da coletividade. Assim, segundo o Estagirita,
“Justo, então, é aquilo que é conforme a lei e correto; e o injusto é o
ilegal e iníquo”. (1996: 194)
Deve-se atentar que Aristóteles associa a justiça à conformidade com a
lei. No mesmo sentido é o conceito de legalidade para Kant. Mas é bom
frisar que são distintas as concepções que Kant e Aristóteles tem de
legalidade. Para o segundo, esta lei é a natural ou comum, fruto da reta
razão, e não a lei particular, passível das mais variadas distorções e
equívocos. Para kant, a legalidade refere-se à lei particular. Portanto,
para o filósofo grego, a legalidade referente à justiça universal é a
conformidade com esta última, e não com a justiça particular.
Aristóteles entendia que o ato conforme a lei era justo porquanto esta
conduta ia ao encontro do fim a que se destinava a lei, qual seja, o
bem comum de todas as pessoas, a eudaimonia.
Pressupondo a boa elaboração da lei em razão do fim a que se
destinava, a ação conforme a lei era justa e, neste sentido, a justiça
era a excelência da moral perfeita, considerada não de forma irrestrita,
mas em relação ao próximo. É a excelência da moral, pois é uma virtude
que se exerce em relação ao outro, tendo em vista, portanto, a
alteridade. (1996: 195)
“Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque
ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita
porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la
não somente em relação a si mesmas, como também em relação ao próximo”.
(1996: 195)
A justiça é a forma perfeita da excelência moral porque é uma virtude
que tem por objeto o outro. A justiça faz o indivíduo sair de si para
considerar o próximo, por levar em consideração o princípio da
alteridade.
Aristóteles estabelece uma distinção entre a excelência moral e a
justiça. Há uma distinção material entre ambas, embora formalmente sejam
coincidentes. A justiça é uma virtude dirigida ao próximo devidamente
motivada e condicionada. É uma disposição entre fronteiras de algum
interesse.
Já a excelência moral é uma disposição irrestrita, não motivada e não
condicionada por qualquer elemento exterior. Aproxima-se do conceito de
moralidade de Kant, da ação boa por si mesma, fruto do comando da reta
razão, do consubstanciado no imperativo categórico. Assim, verifica-se
que a justiça universal é a conformidade com a lei natural.
Neste tópico, Aristóteles apresenta a justiça universal (excelência
moral) que é a conformidade com a lei natural. A injustiça corresponde à
desconformidade com a lei natural, que visa sempre ao bem comum.
Neste tópico, Aristóteles introduz uma segunda concepção de justiça,
delineando os seus atributos. Faz isso informando que há dois tipos de
injustiça: injustiça em geral (universal) e injustiça no sentido geral
de ilegal. (1996: 196)
Há, portanto, a justiça universal enquanto forma perfeita de
excelência moral e outra, enquanto forma distinta desta excelência.
Assim, o Estagirita afirmou que há uma justiça e uma injustiça em
sentido restrito. Vale a pena repetir que no tópico anterior afirmou-se
que a justiça é uma excelência moral como um todo, e a justiça
corresponde ao exercício desta excelência moral, direcionada ao outro,
sobretudo. A injustiça como um todo corresponde ao exercício da
deficiência moral como um todo. Ambas, em relação ao próximo. (1996:
197)
Aristóteles apresenta as duas espécies de justiça particular em
sentido estrito. A primeira é a justiça distributiva (distribuição de
funções, dinheiro, cargos etc), numa relação de subordinação entre
governante e governado, havendo uma igualdade geométrica, relativa, de
maneira que a distribuição é desigual baseada em critérios subjetivos,
meritórios (características de quem recebe e natureza da coisa
distribuída). A segunda espécie de justiça é a corretiva, a qual se dá
entre pessoas privadas, mediante uma relação de coordenação, de
igualdade aritmética, absoluta, baseada em critérios objetivos.
A justiça corretiva subdivide-se em justiça particular corretiva
comutativa fundada em relações voluntárias (natureza contratual do
vínculo) e justiça particular corretiva reparativa (natureza de dano do
vínculo) fundada em relações involuntárias.
A justiça universal é a perfeita forma de excelência moral, pois se
dirige ao outro. A lei geral (natural) visa o bem da coletividade e,
portanto, é uma expressão desta justiça. Logo, justo é tudo aquilo que é
conforme esta lei geral, que difere muito da lei particular. Injusto é o
ato que não seja conforme a lei geral. A desconformidade com a lei
caracteriza a injustiça.
A justiça particular distributiva e a justiça particular corretiva
(comutativa e reparativa) envolvem na questão da justiça e da injustiça a
concepção de igualdade. Isso quer dizer que aqui não está em jogo a
questão da conformidade ou desconformidade com a lei geral. Justo e
injusto no âmbito da justiça particular dizem respeito à igualdade ou
desigualdade do que recebe ou deixa de receber o indivíduo.
A justiça distributiva é proporcional ao mérito de cada um, de maneira
que a igualdade não é absoluta, mas relativa, geométrica. Vale lembrar a
representação geométrica apresentada por Aristóteles (A:B = C:D).
O justo na justiça distributiva “é o meio-termo entre dois extremos
desproporcionais, já que o proporcional é um meio-termo, e o justo é o
proporcional.” (1996: 199)
Importante destacar, mais uma vez, que na justiça distributiva a
igualdade é geométrica e o que vai distinguir o quinhão de participação
de cada um é o mérito pessoal (subjetivo), tendo-se em vista as
características pessoais do recebedor e a natureza do que lhe será
entregue.
Na justiça distributiva o justo é o proporcional (igualdade
proporcional aos méritos) e o injusto é o que contraria a
proporcionalidade.
A justiça particular corretiva é uma espécie de justiça que se
manifesta na relação entre particulares (coordenação), segundo um padrão
de objetividade. Para esta espécie, a justiça consiste numa igualdade
aritmética entre os particulares. Já a injustiça reside na desigualdade.
Enquanto na justiça distributiva o que se vê é uma distribuição pelo
governo de cargos e funções, por exemplo, na justiça corretiva há uma
relação de natureza contratual, voluntária, ou de dano, involuntária, em
que uma vez verificada a injustiça, isto é, uma desigualdade
aritmética, o juiz tenta igualizar as coisas por meio da penalidade,
subtraindo do ofensor o excesso de ganho que lesou a vítima, numa
tentativa de restabelecer o status quo ante. (1996: 199-200)
Segundo Aristóteles, o igual na justiça corretiva, “é o meio-termo
entre o maior e o menor”. (1996: 200). “(...) a justiça corretiva,
portanto, será o meio-termo entre a perda e o ganho” (1996:200). O igual
é o meio-termo entre o excesso e a carência segundo uma
proporcionalidade aritmética.
Para o filósofo ateniense, o justo “é em certo sentido um meio-termo
entre o ganho e a perda nas ações que não se incluem entre as
voluntárias, e consiste em ter um quinhão igual antes e depois da ação”.
(1996:201)
Aristóteles mostrou que a reciprocidade não é justa de forma
irrestrita, como pensavam os pitagóricos. Sustenta que será justa a
reciprocidade fundada na proporcionalidade, ou seja, a proporcionalidade
relativa. Dá o exemplo do funcionário público que no legítimo exercício
das suas funções fere um cidadão. É claro, disse o Estagirita, que não
pode se aplicar neste fato a regra de reciprocidade dos seguidores de
Pitágoras, pois o servidor agia consoante os ditames da lei, no
interesse da comunidade. O mesmo não se daria se o cidadão ferisse o
mesmo funcionário. Nesta hipótese, este cidadão deveria sofrer as
penalidades cabíveis, proporcionalmente.
Assim, revelou Aristóteles que a reciprocidade absoluta enseja a
injustiça, enquanto a proporcionalidade da retribuição é favorável à
justiça, porque mais próxima da igualdade, trazendo o exemplo do
dinheiro para enriquecer esta sua tese. É através do dinheiro que haverá
uma padronização, tornando os bens comensuráveis, a medida que igualiza
os bens segundo um padrão de igualdade.
A reciprocidade é uma realidade tão patente como fator de justiça que o
dinheiro é o exemplo mais eloqüente de que a reciprocidade proporcional
tende para a justiça. A proporcionalidade valorativa das coisas é tão
real que o dinheiro cumpre a missão de padronizá-los, de maneira a
igualizá-las e torná-las comensuráveis, favorecendo as trocas, o
comércio. Se assim não fosse poderia ser que se pagasse o mesmo preço
por produtos de conteúdos econômicos diferentes.
Isso mostra que a reciprocidade deve atender a uma proporcionalidade,
pois à semelhança das coisas padronizadas pelo dinheiro, que são
naturalmente diferentes, carecendo deste instrumento para se instalar
uma justa proporção, em matéria de justiça, deve-se proceder
reconhecendo as peculiaridades de cada situação, retribuindo os atos de
forma proporcional, pois cada qual tem o seu conteúdo de importância
para a sociedade. Em suma, não dá para usar o mesmo padrão de
retribuição, pois as coisas e os fatos são diferentes. O dinheiro é um
instrumento de “comensuração”, isto é, torna possível medir as coisas.
Ora, mede-se coisas diferentes. A reciprocidade no que toca à justiça
também deve ser aplicada de forma comensurável, deve-se retribuir com a
justa medida cada ação. Este pensamento de Aristóteles apoia-se no
pensamento do seu Mestre, Sócrates, para quem combater a injustiça com a
mesma injustiça nos leva a um ciclo infinito e interminável de
injustiças, e isso, não é nada bom para a pólis. (1996: 201-204)
A justiça, pois se relaciona com o meio-termo. Já a injustiça refere-se aos extremos (excesso e carência).
Aristóteles afirma serem injustas estas duas situações: a pessoa que
dá demais a si do desejável, em detrimento da outra, ou dá pouco a si do
nocivo e dá à outra muito do prejudicial. Contudo, uma pergunta vem à
tona: e a pessoa que dá a si pouco do desejável, embora lhe fosse de
direito, para dar à outra além do desejável? Comete injustiça a pessoa
que assim procede? Aristóteles entendia que não pode haver injustiça
para consigo mesmo, como será adiante comentado. (1996:205)
A justiça política é aquela que vale para os cidadãos livres (filhos
menores, escravos e mulheres não eram considerados cidadãos). Para estes
últimos, aplicava-se uma justiça especial, por analogia, não a justiça
política. (1996:205)
Aristóteles considerava que não poderia haver injustiça no sentido
irrestrito (justiça política) em relação aos filhos menores, mulher e
escravos, pois eles não enquadravam na categoria de pessoas livres e
proporcionalmente ou aritmeticamente iguais. (1996:205)
Somente as pessoas que governavam ou eram governadas eram consideradas cidadãos da pólis. Logo, somente estes poderiam ser objeto de injustiça política, que se refere tão somente aos cidadãos.
Há, portanto, espécies de justiças: justiça política (cidadãos), justiça doméstica (filhos), justiças para com a mulher.
A justiça política subdivide-se em: justiça natural (que tem menor
potencial de mutação) e justiça legal (que apresenta elevada
mutabilidade). Importante ressaltar que mesmo a justiça natural é
passível de mudança, embora em grau reduzido. (Aristóteles fala que
somente em relação aos deuses se pode pensar em algo imutável, já em
relação aos homens isso não é possível). (1996:206)
A justiça natural é aquela que vale em qualquer parte, enquanto a justiça legal (convencional) varia de lugar para lugar.
Aristóteles estabelece uma distinção entre atos de injustiça e atos
injustos. Esta distinção tem por critério a voluntariedade ou não
voluntariedade do ato. Assim, o ato de injustiça traz consigo a nota da
voluntariedade, enquanto no ato injusto não há voluntariedade. Na ação
voluntária há a consciência e o desejo deliberado de se praticar o ato.
Aquele que comete um ato de injustiça age voluntariamente e conhece a
pessoa a ser afetada, o instrumento de sua ação e tem claro em si o fim
perseguido. Já o ato involuntário é todo ato praticado na ignorância,
não depende do agente ou é praticado sob compulsão.
Esta noção de ato injusto e ato de injustiça tem grande relevância no
sistema sancionatório, penalizador e na dosimetria da pena no direito
hodierno.
Há três espécies de dano, segundo Aristóteles: o primeiro é o causado
na ignorância. Dá-se quando a pessoa prejudicada, o ato, o instrumento
ou o fim a ser atingido não é o que o agente imaginava. Denomina-se este
caso de infortúnio, pois o dano ocorre contrariamente a uma expectativa
razoável. Quando ele não ocorre contrariamente a uma expectativa
razoável, mas não pressupõe deficiência moral, tem-se o segundo, o erro.
Quando uma pessoa age conscientemente, mas não deliberadamente, há
injustiça, este é o terceiro. No infortúnio, no erro e na injustiça há a
prática de atos de injustiça, contudo não se pode qualificar o seu
agente de injusto.
A grande questão é a seguinte: o agente do ato de injustiça não é
injusto, pois foi a circunstancialidade o móvel da sua ação, não sendo
ela fruto do espírito? O injusto é aquele que pratica uma ação não
motivado pelas circunstâncias, mas em razão do seu pendor íntimo, ação
esta fruto de uma deficiência moral. Enfim, o injusto é aquele portador
de uma deficiência moral que age consciente e deliberadamente contra a
vítima. (1996: 208)
Neste tópico, Aristóteles buscou responder a dois questionamentos, a
saber: o primeiro é se a pessoa que atribui à outra um quinhão superior
ao desejável é quem pratica a injustiça ou a pessoa que recebe além da
sua cota de direito. Respondeu o filósofo que quem distribui é quem age
injustamente, é este que pratica um ato de injustiça, pois a ação é
voluntária e deliberada, revelando uma deficiência moral. Já quem recebe
o quinhão excessivo faz o que é injusto, mas não pratica uma injustiça.
A segunda é se uma pessoa pode agir injustamente em relação a si. Diz
que é uma questão controvertida, contudo acha que não pode, pois ninguém
deseja para si o que não é bom.
Temática de extrema importância na Teoria da Justiça de Aristóteles é a
questão da justiça e da equidade. Estas duas se igualam no gênero, mas
ontologicamente são distintas.
A equidade é um corretivo da justiça legal. Iguala-se, contudo, com a
idéia de justiça natural (comum). “O eqüitativo é justo, e melhor que
uma simples espécie de justiça, embora não seja melhor que a justiça
irrestrita (mas é melhor que o erro oriundo da natureza irrestrita de
seus ditames). Então o eqüitativo é, por sua natureza, uma correção da
lei onde esta é omissa em razão da sua generalidade”. (1996: 213)
A equidade vem atenuar, mitigar os rigores da lei, uma vez que,
aplicando-se a lei geral, que desconsidera por razões óbvias as
peculiaridades do caso particular, estar-se-ia praticando uma injustiça.
A equidade também é importante quando inexiste lei. De fato, a equidade
é um corretivo da justiça legal cuja natureza geral pode ensejar
injustiças.
Por fim, Aristóteles debruçou-se sobre a seguinte questão: uma pessoa é
capaz de ser injusta em relação a si mesma? Esta pergunta já foi feita
anteriormente. Citou Aristóteles o exemplo do suicida que por meio do
seu ato contraria a reta razão, ato este que a lei abomina, por ser
injusto, pois contraria o suicida e a cidade. Daí porque naquela época o
suicida era penalizado.
Admite-se que uma pessoa pode agir injustamente “contra si mesma” e
que também pode sofrer, voluntariamente, uma injustiça. Na época de
Aristóteles a mulher, o escravo e os filhos eram considerados partes do
senhor. “É com vistas a estas partes que uma pessoa pode agir
injustamente em relação a si mesma, porque tais partes estão sujeitas a
ser contrariadas em seus respectivos desejos” de tal maneira que pode
haver, neste sentido, uma espécie de justiça ou injustiça para consigo
próprio. (1996:215)
Autor
Alexandre Oliveira Soares
Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Especialista em
Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIPAC.
Nenhum comentário:
Postar um comentário