“Só em Deus a minha alma tem repouso, porque dele é que me vem a salvação!” (Sl 61, 2).
Neste
salmo, diante das presentes perseguições sofridas, Davi anseia um
refúgio seguro para repousar a alma, ora tentada ao medo, ora propensa
ao desânimo. Bem sabe que nada neste mundo é suficiente para satisfazer
os seus anseios mais profundos, e a inquietude de sua alma, insistente e
avassaladora, não se deixa iludir pelos falsos prazeres que, sempre
acompanhados de uma enganosa promessa de felicidade, são vazias e em si
carregam uma multidão de pecados. Por isso, Davi pôde relacionar o
repouso da alma com a redenção da mesma: “[...] porque dele é que me vem a salvação”.
Ó alma predileta, por puro amor o Criador te criou para que com Ele tu
participasses de Sua eterna bem aventurança. Em contrapartida, o pecado é
uma desordem, e como a palavra já denota por si mesma, deturpa a
harmonia deixada por Deus e rompe a profundíssima comunhão d’Ele
contigo, como elucida Agostinho nas Confissões: “Porque não
é caminhando nem atravessando espaços que de ti nos afastamos ou a ti
retornamos [...] Basta mergulhar nas paixões, isto é, nas trevas, para
ficar longe de tua face” (Confissões 18,28). Ao invés esperar do Criador toda a sorte de graças, a imundície do pecado faz com que o homem os procure na criatura: “Trocaram
a verdade de Deus pela mentira, adorando e servindo a criatura em lugar
do Criador, que é bendito para sempre” (Rm 1, 25).
Assim,
o caminho do pecado e o caminho da felicidade são completamente
opostos. Em qual caminho desejas aventurar-te, ó alma sedenta? Acaso é
tão difícil assumir que a tua incessante busca de felicidade não é senão
a busca de Deus? Apóia-te na declaração do salmista e prepara-te para
essa maravilhosa viagem, essa busca de Deus à luz do testemunho e do
ensinamento de Agostinho, uma alma veramente sedenta:
“Assim como a corça suspira pelas águas correntes,
suspira igualmente minh’alma por vós, ó meu Deus!
Minha alma tem sede de Deus e deseja o Deus vivo.
Quando terei a alegria de ver a face de Deus?”(Salmo 41, 2-3).
- 1. A inquietude humana
Não é a toa que logo na primeira página de sua autobiografia Agostinho afirma: “[...] fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” (Confissões 1,1).
Todo o seu itinerário, seja ele intelectual ou espiritual, resumem-se
nesta frase tão intensamente vivenciada por ele. Três elementos desta
assertiva merecem a tua atenção: a finalidade do homem, sua inquietude e o desejo de repouso.
Ó alma amada, foste feita por Deus e para Ele estás orientada; n’Ele
hás de encontrar a tua razão de ser. Eis uma verdade consoladora: tua
existência possui um sentido para além daquilo que podes ver. Por isso,
nunca te sacias plenamente com as ofertas do mundo, pois, sendo a
humanidade marcada com o selo da eternidade, todas as realidades
transitórias lhe são fúteis, sem valor. Santo Agostinho, ao meditar seus
erros passados, compreende a ilusão em que caíra: “[...]
Meu pecado era não procurar nele, e sim nas suas criaturas – isto é, em
mim mesmo e nos outros – os prazeres, as honras e a verdade. Eu me
precipitava assim na dor, na confusão e no erro” (Confissões 20,31).
Alma dileta! Compreende que, embora abraces o amor e as alegrias
terrenas, estas nunca te serão capazes de preencher toda a tua sede de
eternidade, deixando-te profundamente insatisfeita. Respectiva
insatisfação nada mais é do que a santa inquietude, da qual tanto falou
Agostinho. Somente Deus é capaz de oferecer repouso ao homem, pois sendo
Pai de Amor, oferece-se a si mesmo como repouso, abrigo e refúgio: “Vós fostes, ó Senhor, um refúgio para nós” (Sl 89, 1).
Antes de empreenderes essa busca de Deus que, como foi afirmado, é a
busca da própria felicidade, precisas tomar consciência de que és
insatisfeita, inquieta e que, desta forma, deves desapegar-te de toda
afeição desordenada e das escrupulosas propostas deste mundo para
poderes caminhar sem resistências ao encontro do Amado, já que grande é o
fervor do teu coração:
“Em meu leito, durante a noite, procurei o amado de minha alma.
Procurei-o, e não o encontrei. Vou, pois, levantar-me e percorrer a cidade,
pelas ruas e pelas praças, procurando o amado de minha alma [...]
Eu durmo, mas meu coração vigia. É a voz do meu amado a bater [...]
Eu sou para o meu amado e meu amado é para mim,
ele que apascenta entre os lírios” (Ct 3,1-2; 5,2; 6,3).
- 2. A viagem interior
"Aqueles que pretendem encontrar a alegria fora de si, facilmente encontram o vazio" (Santo Agostinho).
Muitos
foram os caminhos que Agostinho havia perscrutado e em nenhum deles
encontrou a felicidade, o pleno repouso da alma! No entanto, descobre,
estupefato diante dos desígnios divinos, que Deus não estava fora, como
se fosse necessário acorrer em muitos lugares para O encontrar, mas sim
dentro dele, na interioridade do seu ser: “A
luz estava no meu interior, mas eu olhava para fora. Ela não estava em
local determinado, enquanto eu só olhava para as coisas situadas em
certo lugar, sem achar aí um lugar para repousar [...] Minha presunção
separava-me de ti. Meu rosto, de tão inchado, me fechava os olhos”
(Confissões 7,11).
O que
este grande santo descobrira é, para ti, ó alma eleita, grandeza
inestimável. Deus, fonte de toda a nossa esperança, está no mais íntimo
de tua alma e não fora de ti: “Instigado
[...] a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua
guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio. Entrei e, com os
olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria
inteligência, vi uma luz imutável [...] Quem conhece a verdade conhece
esta luz, e quem a conhece, conhece a eternidade” (Confissões 10,16). Em
contrapartida, reconhecer a presença do Senhor no teu interior não
basta, pois sendo apenas um reconhecimento não significa ainda a posse
do mesmo, mas já é um grande passo de fé como o foi para Agostinho.
Desejas ainda aventurar-te nessa bendita busca de Deus?
“Voltem a procurar-te, eis que aí estás, em seus corações, no coração de cada um que te reconhece
e se lança a teus pés, e chora no teu seio, após longa e difícil jornada” (Confissões 2,2).
- 3. “Eu, prazer em conhecê-lo!”
"Que eu me conheça a mim mesmo, que eu Te conheça Senhor" (Santo Agostinho)
Agora
que já bem sabes que o Amado não está muito longe, mas sim no profundo
do teu ser, comece esta caminhada à interioridade. Sem receios,
aprofunda-te cada vez mais... Mas eis que surge neste caminho algo
inesperado, como que um bloqueio, que te impede de prosseguir caso não o
superes! O que poderia estar atrapalhando o teu encontro com Deus, ó
alma eleita? Acaso seria a fúria de Satanás? Não seria o teu medo ou o
teu receio de estar em um caminho errado? Quem te parou? Digo-te: tu
mesma! És, neste preciso momento, o próprio peso desta santa caminhada
rumo à interioridade. Antes de tudo, entende o que Agostinho afirmou: “Onde
estava eu quando te procurava? Estavas diante de mim, e eu até de mim
mesmo me afastava, e se não encontrava nem a mim mesmo, muito menos
podia encontrar-te a ti” (Confissões 2,2). Faz tu uma
pequena experiência: aponte o teu dedo para ti mesma e movimente-o para
dentro, como se quisesses tocar o Senhor que em ti está! Acaso não te
vais sentir impedida pela parede do templo do teu corpo, ó alma sedenta?
Assim, da mesma forma sucede neste caminho que há pouco empreendeste: a
alma que se decide encontrar o Senhor dentro de si deve primeiro,
encontrar-se consigo mesma, do contrário, nunca poderá repousar nos
braços de Deus. Santo Agostinho bem delineou que quem se afasta de si mesmo, acaba se afastando de Deus: “[...] e se não encontrava nem a mim mesmo, muito menos podia encontrar-te a ti”.
Portanto, não fujas de ti mesma! Não tenhas medo de se colocar frente a
ti mesma! Não te dê às costas! Vê quem és! Descobre-te! Estás prestes a
dar o segundo passo fundamental para o encontro com o Senhor. Não é sem
razão que Ele, em sua divina sabedoria, permita-te enfrentar a ti
mesma, pois bem sabe que podes muito crescer com esse encontro valioso.
- 4. Perdoar-se!
“Senhor,
enquanto ele falava, me fazias refletir sobre mim mesmo, tirando-me da
posição de costas, em que eu me havia colocado para não me enxergar a
mim mesmo, e me colocavas diante de minha própria face, para que eu
visse quanto era indigno, disforme, sórdido, coberto de manchas e de
chagas.
E eu via, e me horrorizava, e não tinha como fugir de mim mesmo” (Confissões 7, 16).
Muitas
foram às vezes que, ao convite de ver a ti mesma, pretendestes fugir,
assim como o fez Agostinho. Foges, muitas vezes mergulhando-te na
agitação mundana enquanto o Senhor te chama ao deserto para que, a sós,
consigo mesma, possas escutar a si e a Deus: “Pois, agora, eu é que vou seduzi-la, levando-a para o deserto e falando-lhe ao coração” (Os 2, 16).
Por que Deus escolhera este lugar? Quando se fala de deserto, as
primeiras moções da imaginação humana remetem a um lugar onde reinam o
silêncio e a solidão. Quantos sãos preciosos momentos que Deus fala
contigo, mas não escutas por estares surda pela tormenta exterior: “Ah,
Israel! Se quisesses me escutar [...] Mas meu povo não ouviu a minha
voz [...] Quem me dera que meu povo me escutasse!” (Sl 80, 9b, 12a, 14a).
O silêncio que Deus te pede é o interior para que possas encontrar-te
contigo. Assim, estejas atenta e não deixes a graça passar: “Não te disperses. Concentra-te em tua intimidade. A verdade reside no homem interior” (Santo Agostinho).
Acaso
podes estar perguntando-te: Por que o homem foge de si mesmo? O que lhe
custa tanto, a ponto de não querer se encontrar com a sua própria
identidade? Com certeza, ó alma eleita, Deus permite aos seus queridos
filhos este momento pessoal porque nem sempre estão reconciliados
consigo mesmos. Nem sempre aceitam o que tiveram em suas vidas. Nem
sempre aceitam portar as feridas que carregam e que na verdade são
frutos de uma história de vida cheia de sofrimentos. O santo de Hipona
já ensinava: “Uma grande felicidade é precedida sempre de um grande sofrimento” (Confissões 3,8). Se
tu desejas chegar ao fim deste caminho rumo à posse da felicidade, tem
por certo de que o sofrimento virá. O Senhor, seguramente, prepara
grandes maravilhas para ti, porém, deves perdoar-te a ti mesma! Ó alma
amada, convido-te neste momento a olhar para ti e ver, sem preconceitos,
quem realmente és! Ver-te em todas as tuas limitações, fraquezas e
pecados! Relembrar a tua história e com ela todas as feridas que com ela
tu carregas.
Como deve ser penoso para ti rever a tua lida e, diante
dela, aceitar tudo o que te aconteceu! Porém, escuta docemente a voz do
Espírito que te diz: “Tudo
o que te acontecer, aceita-o, e sê constante na dor; na tua humilhação
tem paciência, pois é no fogo que o ouro e a prata são provados e, no
cadinho da humilhação, os que são agradáveis a Deus” (Eclo 2, 4-5). Tem
por certo, ó alma amorosa, que se Deus te permite rever as feridas e
sofrer a humilhação do que não aceitas em tua história é porque muito te
ama e desejas ver-te curada. Desta forma, alegra-te por seres agradável
a Deus, pois em tua miséria o Artífice Divino edificará o trono de Sua
Misericórdia. À medida que aceitares a amares a ti mesma, com
sinceridade, verás, com os olhos da alma, uma luz brilhantíssima, donde
emana paz, amor e alegria profundíssima: encontras-te, assim, o Amado!
“[...] entrei no íntimo do meu coração sob tua guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio.
Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência,
vi uma luz imutável [...] Quem conhece a verdade conhece esta luz,
e quem a conhece, conhece a eternidade” (Confissões 10,16).
- 5. O divino encontro
"Amar: ir perder-se de si! Encontrar a Deus!" (Santo Agostinho)
Já
ensinava Agostinho que a busca de Deus é a busca da felicidade e que o
encontro com Ele não é senão a própria felicidade. Bendito é aquele que
encontrou, mesmo que em dores, o colo de Deus em seu pequenino coração. Ó
alma enamorada, se tu superaste a ti mesma, aceitando-te em todos os
teus fracassos e amando-te em tua pequenez, saibas que livre dos afetos
terrenos estás e, assim, podes voar tranqüila e serena para o encontro
com o amado. Eis o que Ele te diz: “Levanta-te, minha amada, minha rola, minha bela, e vem! O inverno passou, as chuvas cessaram e já se foram” (Ct 2, 10b-11). Responde a Ele: “Como és belo, meu amado, como és encantador. Nosso leito está florido [...]” (Ct 1, 16).
Se
antes a recordação de tua vida era inverno e tempestade para a alma,
rejubila-te, pois o perdão floriu teu coração, o leito de encontro.
Firma-te nisto: possuir a Deus é uma experiência valiosíssima; é como um
tesouro que, quando encontrado, faz com que todas as coisas antes
consideradas dignas de atenção tornem-se medíocres e mesquinhas: “O
Reino dos Céus é como um tesouro escondido num campo. Alguém o
encontra, deixa-o lá bem escondido e, cheio de alegria, vai vender todos
os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13, 44). Louva ao Senhor, pois grande foi a compaixão d’Ele para contigo. Tu que és pó e terra, “fraca e de existência muito breve” (Sb 9, 5b),
foste alcançada pela misericórdia e assim és, ao poucos, restituída à
semelhança do Criador. Vê que Agostinho já confessava o seu profundo
agradecimento ao Senhor pela grande obra de restauração em sua vida: “Tu
te compadeceste da terra e do pó, e quiseste reformar minhas
deformidades. Com um aguilhão secreto provocavas em mim a inquietude,
para que eu me mantivesse insatisfeito, até que te tornasses uma certeza
ao meu olhar interior” (Confissões 8,12).
Novamente
interpelo-te: acaso não esteja Deus te inquietando para que não durmas
no sono mortal do pecado, onde as falsas alegrias nada mais são do que
armadilhas para a desgraça eterna? Acaso não esteja Deus permitindo-te a
cruz do dia a dia para que sintas na carne o fato de que nada nesta
terra durará para sempre? Nunca te tenhas por satisfeita neste mundo, ó
alma amorosa! Inimaginável é o que Deus desejar dar-te, porque “o
que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram,
nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1Cor 2, 9).
Não te
exaustes em sonhar com o céu, onde poderás gozar plenamente do teu Deus
para sempre, consumindo-se em Seu Divino Amor e formando, assim, com
Ele, uma só alma e um só coração. Embora o Senhor esteja esperando tua
doce visita, seja na oração cotidiana, seja nos sacramentos –
especialmente na Eucaristia, onde, após comungadas as sagradas espécies,
o Senhor faz morada em ti – ou em qualquer lugar propício ao
recolhimento interior, estejas sempre preparada,
ó alma vigilante, para o momento final onde Ele virá ao teu encontro
para que, enfim, possas receber a coroa da glória! Não te esqueças do
que recorda o salmista: “[...]
como um sopro se acabam nossos anos. Pode durar setenta anos nossa
vida, os mais fortes talvez cheguem a oitenta; a maior parte é ilusão e
sofrimento: passam depressa e também nós assim passamos” (Sl 89, 9b-10). Enquanto dure o teu calvário, não percas a tua fé, o teu amor e a tua esperança; e sempre declara tu ao Senhor: “[...] fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” (Confissões 1,1).
Ó Santa Inquietude,
que despertas as almas para o divino encontro,
desperta-me para o céu!”
Gil Maria
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