A Dúvida de Descartes
"R.
Descartes - Vida, pensamento e obra" - Colecção
Grandes Pensadores pp. 118-
"A dúvida
metódica
Regressemos à tarefa
principal. Descartes pretende refundar a filosofia a partir de um
princípio absolutamente certo. À primeira vista, parece difícil
encontrar um ponto de partida. Uma maneira pode ser o exame das
condições que o princípio deve satisfazer.
Um princípio
absoluto é, por definição , aquele do qual não é possível
duvidar. Aquele que se apresenta ao espírito com um evidência
irresistível. Mas, para comprova que existe um princípio assim, é
preciso criar um tipo de prova. A prova tem de ser radical e impor exigências extremas. Exigências tais que deixem fora de qualquer
consideração todas as coisas que contenham a mínima sombra de
dúvida.
Uma dúvida total.
Uma vez impostas estas
condições, se nof im do processo alguma coisa se mantiver válida -
o que não está de modo algum garantido - , neste caso o filósofo
terá encontrado o que procurava: um fundamento metafísico
absolutamente certo e indubitável. Mas como pode Descartes descobrir
se existe algo que se respeite semelhantes requisitos? Existe um
modo: levando a dúvida ao extremo. Isto é, duvidando
sistematicamente de tudo. Por outras palavras, levantando uma dúvida
geral e hiperbólica que abranja, sem exceção, todos os âmbitos
da realidade. Trata-se de uma prova, por assim dizer,
invertida.
Descartes não postulará à partida um certo
candidato à certeza absoluta para depois o submeter à prova para
ver se á o que procura. Isto implicaria pressupor, sem outros
motivos para além da tradição ou do preconceito, que certos
conceitos são mais adequados que os outros para desempenharem o
papel de princípio fundamental. Em vez disso, Descartes segue o
caminho contrário: guia-se pelas condições que o conceito deve
cumprir e desenha a sua prova a partir dessas condições. Para
descobrir o fundamento, terá de chegar a ele através da rejeição
metódica de tudo o que for duvidoso. Suspenderá a crença na
realidade de tudo o que existe e observará se, apesar disso, algo
permanece válido.
Dimensão paradoxal da dúvida
cartesiana.
Como veremos, a dúvida cartesiana não está
isenta de uma dimensão paradoxal, já que Descartes pretende obter
um conhecimento positivo mediante a aplicação extrema da negação
à totalidade dos conteúdos pensáveis.
E, precisamente, a busca da verdade absoluta suscita nele a idéia de
que 'devia fazer sempre o contrário e rejeitar como absolutamente
falso tudo aquilo que pudesse imaginar a menor dúvida, para ver se ,
depois de feito isto, não me restava nas minhas crenças algo que
fosse inteiramente indubitável' .
Antes de escrever as etapas
da dúvida cartesiana, é necessário fazer algumas observções para
evitar possíveis
mal entendidos. Antes de mais, a dúvida é, como já
adiantamos, uma operação consciente e metódica. Note-se que
Descartes não sofreu uma inesperada perda do sentido da realidade
nem necessita de nenhum subterfúgio para se apoiar.
Descartes toma, de maneira deliberada, a decisão de duvidar e
planifica em pormenor as etapas do processo.
Um processo de duplo sentido.
Estas etapas configuram um processo de
duplo sentido. Como se trata, afinal, de reconstruir o fundamento que
suporta o ser das coisas – o que, em termos filosóficos, se chama
o fundamento ontológico da realidade ou , de forma, menos drástica,
de sua neutralização.
Ao longo deste processo, Descartes
perfurará, uma seguir à outra, as camadas de sentido que configuram
a sua vida, desde a mais imediatamente duvidosa até às consideradas
virtualmente indubitáveis.
Só então,, de desde que a busca do
fundamento tenha tido sucesso, poderá o filósofo empreender o
caminho de regresso e reconstruir, com a ajuda do novo princípio, as
dimensões da realidade abolidas pela dúvida. Descartes desenvolve a
dúvida metódica em duas obras, no Discurso do Método e, com
mais pormenor, nas Meditações Metafísicas, que contém a
parte mais importante da sua filosofia fundamental, Vejamos os
pormenores do processo.
Primeira fase da dúvida.
Em primeiro lugar, a dúvida recai
sobre a informação que recebemos através dos sentidos.
'Certamente, tudo o que admiti até agora como sendo o mais
verdadeiro foi recebido de ou por meio dos sentidos; mas descobri que
estes por vezes me enganam e é prudente não confiar de todo em quem
nos enganou, mesmo que só uma vez
.
Para além ds subordinação
racionalista de Descartes e da sua confiança na razão acima da
percepção sensível, o primeiro momento da dúvida não apresenta
demasiados problemas. No fundo trata-se de uma dúvida filosófica,
se não do sentido comum.
Seria difícil encontrar alguém que
confiasse plenamente na informação proveniente do seus sentidos.
Desde erros de reconhecimento visual, passando por ilusões
auditivas, tácteis, etc., é indiscutível que fiabilidade da
percepção sensível não é de modo nenhum absoluta. Portanto, não
é possível considerá-la como fundamento sobre o qual se possa
erguer um sistema à prova de erros.
Segunda fase da dúvida.
O segundo momento pressupõe um salto
considerável em relação ao anterior e suscita algumas
interrogações. Depois de desactivar o primeiro nível da realidade,
Descartes dispõe-se a pôr em dúvida a própria essência do seu
credo filosófico: a própria faculdade racional, responsável pelos
nossos raciocínios e operações intelectuais. 'E como há homens
que se enganam ao raciocinar, mesmo acerca das questões mais
simples de geometria, e cometem paralogismos [ raciocínios
incorrectos; nota do autor], entendi que estava eu tão exposto a
errar como qualquer outro e rejeitei como falsos todos os raciocínios
que antes tinha considerado demonstrações
.
Com efeito, é facto que todos nos
enganamos com frequência nos nossos raciocínios. Mesmo quando se
trata de realizar operações simples, o erro está sempre à
espreita e é fácil incorrer nele. Aparentemente, até aqui nada a
objectar.
Contudo, poderíamos fazer a seguinte
pergunta: se estou tão exposto a enganar-me como qualquer outro
homem e se, em qualquer momento, posso cometer um erro de raciocínio,
esta circustância não levanta dúvida acerca das etapas seguintes
do desenvolvimento da dúvida metódica?
Tentaremos esclarecer as nossas
palavras. Antes de mais , é evidente que o processo de dúvida
metódica evolui sob a supervisão da faculdade racional. Contudo,
Descartes afirma que “rejeita” como falsos todos os raciocínios
que antes tinha tomado por demonstrações.
Ora, não parece lógico limitar a
rejeição unicamente aos próprios raciocínios. Os raciocínios não
aparecem sozinhos e são, pelo contrário, o produto da razão
humana. E, se os raciocínios foram erróneos, isso é por que o seu
emissor, a razão, não pode ser considerada como uma instância
absolutamente fiável. Mas, nesse caso, como poderemos confiar nela
para o resto do processo?
Poderia suceder que, em etapas
sucessivas da dúvida, eu cometesse erros análogos – o que não é
improvável, dado que tratamos de questões nada simples – e que só
descobrisse mais à frente, ou nem sequer os descobrisse nunca. Em
suma, parece que Descartes, ao duvidar da capacidade de raciocínio
do homem, está a puxar o tapete debaixo de seus próprios pés. Na
sua impugnação da razão parece existir um certo carácter auto
referente, que merece ser tido em conta.
Terceira fase da dúvida.
Na terceira fase da dúvida, Descartes
recorre a um tema clássico: a interrogação acerca do possível
carácter ilusório de toda a realidade. 'Pois bem, sou um homem, e
como tal, costumo dormir e representar em sonhos as mesmas coisas, ou
mesmo por vezes ainda menos verossímeis que as que os homens
imaginam quando estão acordados. E, com muita frequência, o sonho
persuade-me das coisas quotidianas; que estou aqui, que visto um
roupão, que estou sentado junto da lareira embora durante o tempo
todo esteja deitado nu entre os lençóis da cama. (..) Contudo,
recordo que por vezes me enganei em jogos com pensamentos
semelhantes; e , ao considerar isto com mais atenção, parece-me tão
evidente que a vigília nunca pode distinguir-se do sonho com
indícios certos que fico estupefacto e esta mesma estupefacção
quase me confirma na opinião de que estou a sonhar.'
Reformula-se aqui o conhecido tema de
Calderón de la Barca da contraposição entre vida e sonho – ou
entre realidade e aparência – que, embora tenha obcecado
particularmente a época barroca, é quase tão antigo como a própria
filosofia. Contudo a questão adquire em Descartes um matiz
consideravelmente diferente. Isto porque a sua pergunta não é: a
vida é um sonho? ; mas sim: é possível distinguir com absoluta
certeza o sonho da realidade?
O problema dos diferentes âmbitos da
realidade.
A este respeito, talvez um breve
esclarecimento sirva para acabar com um malentendido persistente. O
filósofo , o verdadeiro filósofo, jamais duvida da existência do
mundo como tal. No fundo, em nenhum momento pensa que tudo o que o
rodeia possa ser um nada ou uma quimera sem substância. Essa é uma
preocupação mais própria da mística ou de certa literatura do que
da filosofia.
Mas trata-se precisamente o contrário:
o filósofo, embora considere geralmente que vive nas nuvens, é
dotado de um solidíssimo sentido da realidade.
De facto, o seu sentido da realidade é
tão rigoroso que não lhe permite aceitar sem exame nada do que a
maioria aceita como perfeitamente evidente. Quer isto dizer que não
pode aceitar uma realidade informe ou ambígua. Por isso , quando é
confrontado com a totalidade do que existe, a sua inquietação não
nasce de pensar que talvez atrás de tudo isso não haja nada, mas
sim da dificuldade em distinguir âmbitos contrapostos de realidade,
como o sono e vigília.
É o que sucede no caso de Descartes. O
problema surge quando pretende separar de forma terminante a dimensão
real da dimensão onírica. Em última instância, não há maneira
de fazê-lo e a dúvida faz valer os seus direitos.
Aplicação da dúvida à ciência
matemática.
Com este último passo, Descartes,
conseguiu invalidar praticamente a totalidade das suas antigas
crenças. Passo a passo, neutralizou a validade dos constituintes
significativos da realidade, tanto ao nível mental como
extra-mental. Pode dizer-se que se foi libertado a pouco a pouco de
sucessivas camadas de mundo e neste ponto quase nada lhe resta.
Descartes arrancou os véus da
existência e agora só lhe resta pôr à prova uma coisa.
Precisamente aquela que inspirou a estrutura de seu método e
despertou o seu desejo de construir uma filosofia cuja certeza
pudesse comparar-se-lhe. Referimo-nos à ciência matemática.
Duvidar da ciência matemática não
parece coisa fácil. À primeira vista, é inegável que as verdades
matemáticas se situam numa dimensão que transcende as limitações
intrínsecas da natureza humana. Assim, quer os sentidos me enganem
quer não, quer esteja acordado ou a dormir, dois mais dois
continuarão a ser quatro, um quadrado continuará a ter quatro lados
e a soma dos ângulos de um triângulo continuará a ser 180º.
Nada do que possa acontecer-me poderá
modificar o estatuto destes factos. Nem sequer uma modificação
completa do estado do universo, por muito dramática que fosse, teria
o menor efeito sobre eles. Mesmo no caso de amanhã ocorrer uma
modificação das condições cosmológicas tal que, quando
acordássemos, a força da gravidade tivesse mudado de intensidade ou
mesmo se o Sol já não encontrasse no seu lugar no firmamento, isso
não0 afectaria minimamente as leis matemáticas.
Podemos então dizer que Descartes
encontrou o que procurava? Serão as matemáticas o fundamento
absoluto do seu sistema? Perante os factor, tudo parece indicar que a
resposta ser afirmativa. Mas Descartes é um homem escrupuloso e,
antes de anuir, decide levar as coisas um pouco mais longe. De modo
que coloca a seguinte pergunta. Não poderia acontecer que eu me
tivesse enganado ao realizar operações matemáticas? E se me engano
quando somo três mais dois? E se minha certeza de que um quadrado
tem quatro lados é ilusória?
Uma hipótese extrema.
Por estranho que pareça, não existe
nenhuma contradição em pensar que o uso lógico da razão,
responsável pelo meu conhecimento das verdades matemáticas, esteja
corrompido.
De facto, o que Descartes está a fazer
aqui é levar até o fim a dúvida sobre a capacidade humana de
raciocinar descrita acima. Talvez, ao realizar operações
matemáticas, eu considere que são absolutamente certas as coisas
que não são. A hipótese é sem dúvida extrema. Mas não é
contraditória e, por conseguinte, merece ser considerada.
Reflictamos por um instante. Se a
suspeita de Descartes é fundamentada, encontramo-nos virtualmente
num beco sem saída. Depois de duvidarmos dos nossos sentidos, dos
nossos raciocínios, e da ambígua textura do mundo, a matemática
constituía o último refúgio da verdade. Mas agora duvidamos
inclusive dos seus resultados. O que significa que a dúvida invadiu
tudo.
Não resta nada. Não há nenhuma
dimensão da actividade humana de que possamos estar completamente
seguros. Faça o que fizer, pense o que pensar, posso sempre
enganar-me. E isto suscita um problema não menor e faz com que
apareça em cena um apersonagem que até agora não tinha
desempenhado nenhum papel visível.
O recurso a Deus.
Acabamos de dizer que, neste momento, a
dúvida afecta tudo, no sentido mais forte da expressão. 'Tudo'
significa o inteiro ordenamento da realidade. Mas , para Descartes,
a realidade não surgiu por geração espontânea. A realidade é
obra de Deus. E se Deus é, por definição, sumamente bom, teria
criado um mundo que eu pudesse sempre enganar-me?
Isso parecia indicar uma vontade de
engano de sua parte, o que é sob todos os pontos de vista, um
absurdo. Mas os factos são obstinados: por um lado, é certo que
Deus não pode querer enganar-me mas, por outro lado, não é menos
certo que eu posso sempre estar enganado.
Como resolver semelhante sarilho? À
partida, pode parecer que o recurso a Deus neste ponto é em certa
medida artificioso
uma vez que constitui um elemento externo ao processo da dúvida.
Descartes tem consciência deste facto e escuda-se dizendo que tem
gravada na mente a velha opinião de que há um Deus que criou tudo o
que existe. Mas, no fundo, o seu recurso a Deus justifica-se.
O filósofo chegou ao nível máximo de
impugnação da realidade. E, como a dúvida metódica o conduziu a
um lugar em que já nada se mantém de pé, não tem outro remédio
que não seja apelar à responsabilidade do Criador. 'Mas talvez Deus
não quisesse enganar-me assim, pois diz-se que é sumamente bom;
contudo, se fosse contrário à sua bondade ter-me criado de tal
maneira que eu me enganasse sempre, também pareceria alheio a ela
permitir que me enganasse algumas vezes, o que, não obstante, não
pode dizer-seque não tenha acontecido'.
Como vemos, Descartes não está
disposto a renunciar ao caminho percorrido em nome da divindade. O
resultado da dúvida não é negociável, pensa o filósofo. Mas , ao
mesmo tempo , não lhe resta outra opção além de perguntar a si
mesmo: se a consequência do processo é que as coisas se desmoronam,
que são inconsistentes, em que lugar este facto deixa para um
Criador omnipotente? No fundo, com o seu inimitável tom cortês e
sua tranquilidade de espírito,o que Descartes fez é de uma audácia
considerável: ele pede contas a Deus.
Deus e a razão.
Mas isso não lhe basta. Diz ele que,
inclusive no caso de alguém que, para conservar o atributo da
bondade divina, propusesse a hipótese herética de um criador menos
poderoso ou que pretendesse mesmo justificar a minha imperfeição
por qualquer outro motivo, nem por isso cederia um só centímetro do
terreno conquistado, posto que qualquer uma das hipóteses apenas
confirmariam os seus resultador. '(..) Mas, seja pelo destino ou pelo
acaso ou por uma série contínua de coisas, ou de qualquer outro
modo que suponham que cheguei a ser o que sou, dado que enganar-me e
errar parece ser uma indiscutível imperfeição, quanto menos poder
atribuírem ao autor da minha origem tanto mais provável será que
eu seja tão imperfeito que me enganasse sempre.
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