1. Introdução
Tal artigo, em linhas gerais, tem como preocupação proporcionar e ampliar o
estudo sobre o que é definido por Ciência Jurídica. Em se tratando de uma
análise pormenorizada do que se chama de Ciência Jurídica, nada mais plausível
do que se estudar algo que a fundamenta. Embora Hans Kelsen, em sua obra Teoria
Pura do Direito (Reine Rechtslehre), considere a ciência jurídica como algo
distinto e autônomo em se tratando de outras áreas do conhecimento humano,
acreditamos que ela, assim como todo saber existente, não poderá se constituir
como uma teoria pura cujo seu único objeto seja a norma jurídica. Nessa
perspectiva, observamos na filosofia prática de Kant, mais precisamente na noção
do dever ser, algo como uma estrutura fundante para toda a Ciência Jurídica
como, também, para tudo o que se refere ao Direito pós-kantiano. É por tal
motivo que acreditamos que o estudo da filosofia sistêmica kantiana é um dado
importante para todo e qualquer vertente relacionada às normas ou às leis. Após
o transcendentalismo de Kant torna-se infrutífero uma não recorrência à tal
concepção. Mas por que isso? É necessário que se contextualize a filosofia
kantiana para que se possa dimensionar a sua importância.
Em ampla medida pode-se afirmar que o problema geral kantiano é aquele que
pergunta sobre a possibilidade do a priori. Portanto, a grande preocupação de
Kant sempre foi com a razão. Nos textos pré-críticos esta preocupação já era
vista. Por exemplo, nos Sonhos de um visionário explicados pela metafísica,
datado de 1766, Kant já parece ter uma diretriz para alcançar a solução da
possibilidade da razão. Isto é constatado quando é assinalada na conclusão dos
Träume a impossibilidade para se explicar a relação entre alma e corpo.
Nessa perspectiva, vê-se que nos Träume, Kant compara o sistema
leibniz-wolffiano com os resultados alcançados por Swedenborg. Este acreditava
que via e falava com espírito. Ele afirmava que os espíritos moviam objetos e
que lhes transmitiam mensagens sobre catástrofes e pessoas. No entanto, apesar
de Swedenborg ser um acadêmico respeitado tanto por ser um catedrático de
Matemática na Universidade de Uppsala quanto por seu reconhecimento enquanto
cientista, como, também, pela vastidão e profundidade dos seus escritos sobre
ciência, mesmo assim, Kant acreditava que Swenderborg padecia de alucinações.
Nos Sonhos, Kant qualifica as conclusões swedenborguianas de “loucuras dos
sentidos” e relaciona com as conclusões de Leibniz e Wolff, chamando-as de
“loucuras da razão”. Nestes termos, Kant critica todos os neo-cartesianos e
afirma, veementemente, que nunca vamos poder solucionar os problemas da relação
entre alma e corpo.
Sob essa ótica, quanto à alma, Kant acredita que ela é uma substância imaterial,
tal qual foi provada por Descartes, que tem características próprias as quais
são diferentes daquelas presentes no corpo, que é substância material. Com isto,
então, em seu escrito de 1766, Kant já começava a fazer uma distinção entre
mundo inteligível e mundo sensível.
Posteriormente, na dissertação de 1770, Kant faz a diferença entre mundo
fenomênico e mundo noumênico, com uma concepção propriamente sua de espaço e
tempo.
Logo, o problema kantiano, desde 1766 até as suas últimas obras, foi sempre com
a razão. Neste sentido, no problema kantiano, há uma unidade interna (a
possibilidade do a priori). Esta origina vários outros problemas articulados
entre si, dentre eles o problema teórico e o prático. Concernente ao problema
prático tem-se a relação entre o direito e a ética, onde, na filosofia kantiana,
tanto um quanto o outro são deduzidos a partir da liberdade. Neste sentido, para
Kant:
A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça
jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito,
elucida Henrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos
(nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII
"dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um
"fato". É de acordo com este modelo jurídico que Kant elaborou as deduções
transcendentais tanto na Crítica da Razão Pura como na Crítica da Razão Prática.
No entanto, embora o direito e a ética sejam deduzidos da liberdade, a diferença
entre um e outro reside no fato de que na ética a coerção é interna e enquanto
que no direito é externa. Assim, o presente artigo terá como objetivo apontar a
articulação (identidades e diferenças) entre esses dois aspectos como frutos de
uma mesma raiz: a razão prática, onde, essa, tem uma intrínseca relação com a
razão teórica
.
2. Problema teórico
Acredita-se que o problema teórico kantiano foi um instrumento eficaz para Kant
tentar solucionar uma questão que há muito lhe gerava incômodos: a razão
prática. Portanto, não se pode argumentar em torno do problema prático kantiano
sem fazer menção sobre o seu problema teórico. Este, por sua vez, pode ser
dividido em duas questões:
1ª. A metafísica é possível como ciência?
2ª. Como são possíveis a física e a matemática como ciência?
Em outras palavras, Kant objetivava perguntar como o conhecimento a priori é
possível na matemática e na física e não na metafísica. A preocupação kantiana
com a possibilidade do a priori é indicada até mesmo pela forma como Kant
elabora as perguntas: para a matemática e a física, Kant fornece um tratamento
diferente daquele da metafísica; para esta é perguntado sobre a sua
possibilidade e para àquelas é afirmado serem elas conhecimento científico,
portanto o que ele indaga é sobre o modo de efetuar tal conhecimento.
É conveniente lembrar que, para a filosofia kantiana, ciência é conhecimento
universal e verdadeiro. Logo, ele não poderia ser a posteriori, pois este é
baseado, unicamente, na experiência e esta não garante a universalidade nem a
necessidade de nenhum conhecimento. Então, o conhecimento científico só pode ser
a priori.
Por que o conhecimento a priori é possível na matemática e na física e não na
metafísica? Saber a resposta sobre a questão é se fazer a pergunta sobre a
possibilidade de juízos sintéticos a priori, ou seja, juízos que têm uma
necessidade diferente daquela da lógica formal e, por conseguinte, não se
baseiam no princípio de não-contradição. Nisto ocorre a constatação de Kant que
há juízos universais e necessários, mas que também são juízos de ampliação. E
Kant afirma: “... a experiência nos ensina que uma coisa é isto ou aquilo, mas
não que tal coisa pode ser de outro modo...”
E ainda acrescenta: “... não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós
mesmos nelas colocamos...”
Com isto, nós vimos que o sujeito só pode conhecer a priori algo que ele
representa. O que ele conhece da natureza é o modo como a realidade lhe aparece,
isto é, ele só pode conhecer os fenômenos e não os noumenos. Neste sentido, a
física e a matemática vão se ater a fenômenos. A metafísica, pelo contrário,
objetiva conhecer as coisas através da razão pura e, por este motivo, na sua
busca incessante por razões, ela produz antinomias.
Desta forma, na parte da Crítica da Razão Pura intitulada Dialética
Transcendental, Kant nos fornece o resultado da busca incessante da razão e uma
destas respostas torna-se um problema importante para que Kant funde a sua
ética. Aqui ocorre a ligação que há entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da
Razão Prática.
É na parte da Dialética Transcendental que trata sobre o mundo , Kant vai
abordar a questão da liberdade, mostrando as antinomias cosmológicas, ou seja,
aquelas que sustentam que o problema cosmológico é o da causalidade, e afirma:
“A causalidade, segundo, as leis da natureza, não é a única donde possam
derivar-se todos os fenômenos do mundo. Para explicá-los, é necessário
admitir-se, ainda, uma causa livre”.
Como, também: “Não há liberdade, mas tudo se dá, no mundo, exclusivamente
segundo as leis da natureza.”
Logo, com o acima exposto, o que Kant detecta é que a metafísica consegue
demonstrar, para um só tema, respostas contraditórias. A contradição sobre o
determinismo e a liberdade põe Kant em dificuldades, pois se ele recusa a
causalidade, não há lei para a natureza e nem a ciência. Se Kant refuta a
liberdade, não há ética. Caso ele não dissolvesse tal questão, nós teríamos que
abrir mão do pensamento racional incluindo o ético.
A solução de Kant para o impasse acima mencionado tem como fundamento aquilo que
ele denominou de inversão copernicana, isto é, o conhecimento fundado na análise
do sujeito cognoscente, onde este é parte ativa no processo, impondo as suas
intuições puras de espaço e tempo e os seus conceitos.
3. O problema prático
Loparic afirma que, “deve ser possível à razão humana decidir, com toda
segurança, se um problema teórico é solúvel ou não, podendo chegar, caso o
problema seja solúvel, ao conhecimento do que é procurado”. Nessa perspectiva,
tal como foi acima exposto, o problema teórico kantiano, mesmo resolvido, ou
seja, mediante a junção de intuições e conceitos, da liberdade restrita pelo
fato do homem conhecer, somente, fenômenos – aquilo que ele representa, alguma
coisa, para a filosofia kantiana, ainda faltava. O problema teórico kantiano
parece ter sido um instrumento de ajuda para a solução do problema prático. Em
outras palavras, a grande preocupação de Kant continuava sendo a ética.
No Prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicado em 1785, já
se percebe qual seria a grande preocupação de Kant. Nesse livro ele indaga sobre
a suma necessidade de se elaborar, de vez, uma filosofia moral. pura
completamente expurgada de tudo quanto é empírico. Assim, a constatação que Kant
chegou para responder a tal questionamento foi a seguinte:
As leis morais, com seus princípios, em todo o conhecimento prático
diferenciam-se de tudo o que contenha algo de empírico; e (...) toda a filosofia
moral (...) quando aplicada ao homem (...) fornece-lhe leis a priori.
Sob essa ótica, para diferenciar e explicitar a origem das leis morais de tudo o
que é empírico, Kant utiliza, inicialmente, na Fundamentação, o método do tipo
analítico, porquanto a primeira seção da Fundamentação trata da transição do
conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico e na segunda
seção, Kant mostra a: transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos
costumes. Em seguida, e em sentido inverso, ou seja, sinteticamente, na terceira
seção, Kant aponta o último passo da Metafísica dos costumes para a Crítica da
Razão pura prática.
Portanto, na transição do conhecimento moral da razão do senso comum para o
conhecimento filosófico, por exemplo, Kant vai afirmar que todas as qualidades
superiores do homem estão relacionadas com a boa vontade. No conhecimento moral
da razão humana vulgar alcançamos um princípio, mesmo sem ser concebido
abstratamente, esse serve como padrão dos juízos. Portanto, para corroborar com
isso, é evidente como o senso comum sabe distinguir, em todos os casos que se
apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o que é
contrário a ele. Nessa perspectiva, constata-se que é a vontade de agir por
dever. Logo, para se ter o verdadeiro valor moral, é preciso que toda a ação
seja executada por dever. Onde o valor moral de uma ação “depende (...)
unicamente de princípio do querer...” e” o dever é a necessidade de cumprir uma
ação por respeito à lei.”
Neste sentido, segundo Kant, o homem deve se portar de modo que sempre queira
que a sua máxima seja transformada em lei universal.
Então, o dever, para Kant, não é um conceito empírico e sim uma ordem a priori.
Porém, no homem, a vontade não é perfeita, pois o ser humano, além de ter a
característica da racionalidade, encontra-se submetido às inclinações da
sensibilidade. Por este motivo, as leis da razão se apresentam como imperativos
categóricos. Estes podem ser definidos da seguinte forma: “... procede como se a
máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da
natureza.”
No entanto, embora na terceira seção da Fundamentação Kant vai se preocupar em
justificar a possibilidade do imperativo categórico, é na Crítica da Razão
Prática que a centralidade de tal aspecto vai existir. Nessa perspectiva, na
Crítica da Razão Prática, Kant objetiva mostrar que a razão pura é prática no
sentido em que ela fornece a lei em que toda moralidade vai se fundamentar, na
qual a lei moral é totalmente independente da experiência. Neste sentido, a
vontade determina a si mesma. Isto significa que ela é só a forma da lei, ou
seja, aquilo que garante a sua universalidade. Para tanto, ela precisa ser
livre, logo: “a liberdade e a lei prática incondicionada implicando-se
mutuamente...” .
Por este motivo, a lei moral deve ser formulada da seguinte maneira: “age de
modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como
princípio de uma legislação universal...” .
Assim, para Kant, a lei moral é um fato da razão, pois a consciência do dever é
comum a todos os homens. Isto nos mostra que a razão é legisladora e que ela é
livre, porquanto: “a autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis
morais e dos deveres conforme a ela.” .
Na filosofia kantiana, a característica da autonomia é enfatizada, porque se o
homem partisse dos conceitos de bem ou mal para determinar a lei moral, ele
teria que buscá-los na experiência, esta, contudo, não garante a necessidade e
nem a universalidade de tais conceitos, logo: “o conceito do bem e do mal não
devem ser determinados antes da lei moral (...), mas somente depois desta lei e
por ela...” .
A decorrência da explicação acima é que os conceitos do bem e do mal são a
priori e daí vem o problema de como o Bem e o Mal podem ser aplicados a objetos
sensíveis, portanto, Kant responde:
Só o racionalismo do juízo se mostra adequado ao uso dos conceitos morais, pois
que não toma a natureza sensível senão aquilo que também a razão pura pode
conceber por si mesmo, a saber, a conformidade com a lei, e não introduz na
natureza supra-sensível senão aquilo que, por seu turno, possa realmente
traduzir-se em ações no mundo dos sentidos, segundo a regra formal de uma lei
natural em geral .
Em suma, a pergunta central do problema prático kantiano é: por que eu devo? A
resposta de Kant é: eu devo, porque sou um ser racional. O dever tem a sua
fundamentação na razão, onde esta dita às suas próprias leis. As suas leis vêm
através de um imperativo; isto ocorre, porque o homem não é somente um ser
racional, ele é também sensível. Neste sentido, o ser humano é livre, pois ele
impõe para si mesmo as suas leis, onde a vontade é o seu modo de causalidade.
Ela é livre quando se autodetermina, com isto, ela é autônoma.
4. A prioridade do justo em Kant
Quanto à razão prática, o projeto kantiano é deduzir, tomando como parâmetro o
imperativo categórico, a ética e o direito. Para tanto:
O pertinente princípio de justiça, o da liberdade igual, é formulado por Kant na
sua Rechtslehre/ Doutrina do direito ( § B ). O seu conceito moral do direito
retoma o cerne da idéia de justiça, vale dizer a rigorosa imparcialidade. Ele
vincula o princípio moral geral ( “lei universal da liberdade “) à condição de
aplicação do direito, isto é, ao convívio (...) E Kant considera esse direito
das pessoas a “menina dos olhos de Deus sobre a Terra” (Vorlesung über
Pädagogik/ Preleção sobre pedagogia, p. 490).
No entanto, embora Kant relacionando o princípio moral geral (“lei universal da
liberdade“) à condição de aplicação do direito, há uma distinção fundamental
entre a ética e o direito, ou seja, o fundamento da ética é o próprio dever; em
contrapartida, o direito é determinado por elementos sensíveis. Nele é somente
considerada a exterioridade das ações e “... O Direito é, pois, o conjunto das
condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de
outrem segundo uma lei universal da liberdade...”. Assim, o direito está
inscrito entre as relações intersubjetivas e ele encontra-se presente no campo
das relações práticas do homem com outros homens, onde cumpre salientar que a
ligação é entre dois arbítrios. Tal reação não ocorre segundo desejos, porquanto
o arbítrio é a consciência da possibilidade de alcançar um fim determinado.
Então:
Para constituir-se uma relação jurídica é necessário que aconteça o encontro não
somente de dois desejos ou de um arbítrio com um simples desejo, mas de duas
capacidades conscientes do poder que cada um tem de alcançar o objeto do desejo.
Assim, a relação de um arbítrio com o outro considera, apenas, a forma e não a
matéria na relação dos dois arbítrios. Assim, o direito não vai se preocupar com
os fins individuais ou utilitários do sujeito, mas, somente, em prescrever as
formas na relação dos arbítrios; a preocupação é a de como se deve fazer.
Nestes termos, o problema kantiano é o que o direito deve ser, isto é, Kant vai
se preocupar com a questão da justiça, isto é, “... do critério com base no qual
seja possível distinguir o que é justo do que é injusto...”. Assim, a
preocupação kantiana é com o que deveria ser o direito e sua correlação com o
ideal de justiça. Isto leva a considerar que mesmo que não exista nenhuma
legislação que corresponda ao seu ideal de justiça, a definição kantiana do que
é justo continuará verdadeira, porquanto ela só indica o ideal que o legislador
deveria adequar-se.
O ideal de justiça de Kant pode ser definido como justiça e liberdade. Desta
forma, o direito é, assim, entendido como limite à liberdade individual, só
assim todos os membros da associação podem usufruir de uma igual liberdade
sempre compatível com a do outro. O que importa é a relação mútua dos arbítrios
e a universalidade da lei. Nisto ocorre a coexistências de liberdades externas e
Kant afirma:
Se, portanto, a minha ação ou, em geral, o meu estado pode coexistir com a
liberdade de cada um segundo uma lei universal, aquele que me coloca
impedimentos comete perante a mim um acto injusto; pois que esse impedimento
(essa resistência ) não pode coexistir com a liberdade segundo leis
universais...
Portanto, continua Kant:
A lei universal do Direito é: age exteriormente de tal modo que o uso livre do
teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei
universal; esta é, na verdade, uma lei que me impõe uma obrigação, mas que de
todo não espera, e muito menos exige, que deva eu próprio restringir a minha
liberdade a essas condições em virtude dessa obrigação, mas, pelo contrário, a
razão diz apenas que a liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal
requisito e que ela pode, no plano dos factos, ser limitada por outros
Neste sentido, o direito de cada um vai até onde começa o do outro, onde a
universalidade da lei é dada a priori, fundada na liberdade que é autonomia e o
problema que se apresenta aqui é o de conciliar liberdade com coação. Assim, a
coação não invalida a liberdade, porquanto ela vai de encontro ao que é injusto.
Ela é contrária a tudo que é contra a liberdade e a noção de direito é
relacionada à noção de coação, pois o dever jurídico é a ação conforme o dever.
A obrigação jurídica, então, deve basear-se na razão prática, onde a autonomia é
a exigência de participação de todos na legislação.
Assim, segundo Kant, a passagem do estado de natureza ao estado civil é um dever
para o homem; é a constituição do Estado, onde esta é uma exigência prática.
Isto tudo acontece por meio de um contrato originário.
O contrato originário não é um fato histórico, mas uma idéia da razão, um
princípio ideal que justifica racionalmente o Estado. Então, nele todos deixam a
liberdade externa para retomá-la novamente como membro do estado, abandonando
uma liberdade selvagem para conseguir uma liberdade que advém da vontade de
legislar. Trata-se, então, de submissão à lei que o próprio homem se dar, ou
seja, trata-se de ter liberdade com autonomia.
Em suma:
Com o imperativo categórico, com a idéia do contrato originário e com a
formulação do princípio universal do direito, Kant abre a perspectiva do
procedimentalismo e do formalismo universalista, podendo afirmar a prioridade do
justo ( insistindo no universalismo que permite a coexistência de uma
pluralidade de concepções do que seria a vida boa ) sobre o bem ( ou seja,
concepções particulares do que seria a vida boa, a felicidade ). Essas idéias
são retomadas e transformadas de maneiras distintas por Rawls e Habermas.
5. Considerações finais
O ponto de ligação entre o problema teórico kantiano e o problema prático é a
questão da fundamentação. Na questão teórica eram evidentes o crescimento da
ciência no século XVII e o decréscimo da metafísica, mas o que não ficava claro
era por que um conhecimento a priori como o científico alcançava verdades e o
conhecimento metafísico, também a priori, não as alcançava. Logo, Kant constatou
que a ciência considerava, apenas, os fenômenos e seus juízos eram sintéticos a
priori e a metafísica gerava antinomias e, desta maneira, contrariava até mesmo
um de seus princípios mais fundamentais: o princípio da não-contradição.
Constatada a questão de que a metafísica não poderia ser considerada como
conhecimento, Kant, ainda acreditava que os seus temas eram fundamentais para o
ser humano, como, por exemplo, o da liberdade.
Assim, tanto como foi feito na ciência, Kant procurou fundamentar a metafísica
em algo que não fosse transcendente. A razão passa a ser tratada, então, de
outra forma.
E, para tanto, Kant pergunta: como pode a razão teórica determinar o
conhecimento e a razão prática determinar a vontade?
Neste sentido, a razão determina o conhecimento através de intuições puras de
espaço e tempo e de categorias. Por conseguinte, isto remete a um sujeito, a um
eu penso e a uma necessidade fenomênica.
No âmbito da razão prática, as noções de legalidade, vontade, autonomia e
liberdades estão vinculadas. Onde a vontade é um modo de causalidade, na qual a
liberdade é sua propriedade, por este motivo ela se autodetermina e é autônoma.
A sua validez é para todo o ser racional.
Logo, Kant só chega à idéia fundamental da filosofia prática que é aquela
causalidade por liberdade, porque discutiu a causalidade fenomênica.
Nessa perspectiva, o filósofo de Koenigsberg crê que a razão prática é autônoma,
assim ele procurará um princípio justificador para algo que o senso comum já
sabe, mas não conhece o porquê. Daí é que surge o título da sua obra
Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Crítica da Razão
Prática é afirmado que a tradição filosófica prática sempre utilizou imperativos
hipotéticos como a felicidade, a beatitude, o prazer, o bem-estar, a perfeição
ou a glória de Deus. Baseado nisto podemos inferir que a tradição não tinha uma
Ética. Ela era desprovida de tal saber, pois, além de não fundamentá-lo
coerentemente, restringia-se a um princípio subjetivo da vontade, decorrendo
disto uma pluralidade de matérias ou fins usados em função da realidade de um
fim particular, qual Kant denomina de material. Isto é relacionado como algo
subjetivo, válido, somente, para uma vontade humana incapaz de fornecer a
universalidade e a necessidade requeridas para uma lei moral, mostrando-se,
assim, insuficiente como princípio supremo de moralidade onde o caráter
universal e necessário tem que prevalecer.
Em suma, a razão prática pura descobre o seu princípio na forma pura da razão,
de maneira autônoma, a partir do imperativo categórico. Só, desta maneira,
pode-se fundamentar a moralidade e afirmar que o fato da razão é apoditicamente
certo. Ele é visto através do senso comum, mas não é através desse fundamentado.
Esses fundamentos são a priori, eles estão estabelecidos por si mesmos. Caso
contrário, não haveria tais princípios para o juízo moral, pois se eles fossem a
posteriori não poderiam ser universalizados.
Quanto à universalidade dos princípios da razão prática, o projeto kantiano é
amplo, porquanto, dentre outras coisas, relaciona a ética com o direito. Nessa
perspectiva, na Metafísica dos costumes: “Depois da crítica da razão prática
devia seguir-se o sistema, a metafísica dos costumes, a qual se divide em
primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito e em primeiros
princípios metafísicos da doutrina da virtude...” Mas, em ampla medida, o que
relaciona a ética ao direito? Kant afirma ser um tipo de liberdade que tem a
própria liberdade como causa. Portanto, é na questão da liberdade que esses dois
âmbitos da razão prática coincidem. Quanto ao direito, este está relacionado com
a coexistência das liberdades. Portanto, para Kant, as ações dos homens podem
coexistir com a liberdade de cada um segundo a lei universal do Direito que diz:
age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir
com a liberdade de cada um segundo uma lei universal; esta, embora impondo uma
obrigação, não exige, que se deva restringir a liberdade de um homem a essas
condições em virtude dessa obrigação, mas a razão, somente, afirma que a
liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no
plano dos fatos, ser limitada por outros. Portanto, é nesse ponto que se
constata a distinção que Kant faz entre direito e moral, porquanto a
determinação moral é interna à pessoa, enquanto que a determinação do direito
ocorre no âmbito externo à pessoa. No entanto, tanto o direito como a ética tem
leis universais, por esse motivo só podem ser justificados a priori e sem dados
heterônomos.
Portanto, tudo o que não é lei na filosofia prática kantiana pode-se,
panoramicamente, relacionar com a palavra heteronomia. Com ela se entende a
decorrência e a dependência da vontade às causas e interesses externos. Os
princípios heterônomos podem ser empíricos ou racionais. Os primeiros baseados
no sentimento físico ou moral. Os segundos baseados na perfeição relacionada à
vontade do homem ou baseados em um conceito de perfeição independente advindo de
Deus o qual é causa determinante da vontade do ser humano. Neste caso, quando a
ação do homem é vista determinada diretamente através da inclinação heterônoma
da vontade para objetos sensíveis, tal fato não fundamenta a lei prática.
Em suma, a questão da universalidade ou do apriorismo dos princípios da razão
prática (tanto na ética quanto no direito) somente foi possível após o problema
teórico kantiano ter sido solucionado. Precisou Kant fornecer limites à razão no
conhecimento teórico para constatar que a liberdade fenomênica não era o único
tipo de liberdade possível e que existia um tipo de causalidade que se poderia
admitir como livre. Tal causalidade é que pautava a razão prática tanto na ética
quanto no direito.
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